quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Luz Vermelha solta a voz

 Por FERNANDO LICHTI BARROS


Nada mais daquele guarda-roupa estiloso adotado no auge da fama para dançar iê-iê-iê em boates de Santos. Em agosto de 1987, quando nos encontramos, João Acácio vestia calça caqui, camiseta branca e tênis de pano. Nos cabelos curtos trazia discretos sinais de embranquecimento. Era um sábado de agosto. Vinte anos antes ele, o Bandido da Luz Vermelha, havia sido preso após longa caçada policial.

Na sala onde eu o entrevistava para O Estado de S. Paulo, João Acácio se dizia regenerado. Já não estava ali, na Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, onde conversávamos, o homem destemido que nos anos 60 roubava joias e dinheiro em casas luxuosas depois de acordar os moradores com o clarão de uma lanterna. Nem o sujeito que teve a ousadia de revelar a um desembargador a vontade de matar algumas autoridades e depois “morrer com seis tiros na cara”. Menos ainda o galanteador incorrigível que, em plena sessão de julgamento, lançou piscadelas a uma mulher.

Citado em 94 processos como autor de assaltos, homicídios e estupros, ele se declarava regenerado. "Sou honesto, bacana, amigo de Deus". Sua rotina agora se resumia ao trabalho na oficina de montagem de prendedores de roupa e à leitura da Bíblia. Aprendera a ser “humilde, manso”, apesar de uma ou outra recaída para os lados da imodéstia – ainda se achava sábio e bonito, ainda se mostrava orgulhoso das façanhas que o transformaram num “bandido famoso, noticiado pela imprensa internacional”. 

Coisas do passado. Quem se apresentava ali, aos 45 anos, era um homem cujos prazeres, revelados em meio a frases atropeladas, não iam além de comer chocolate e cantar. 

Ofereceu a mim e a "toda humanidade" interpretações emocionadas de "Caminhoneiro", de Roberto e Erasmo Carlos, e "Cowboy fora da lei", de Paulo Coelho e Raul Seixas. Presenteou-me com um livreto, "Novo Testamento - Salmos, provérbios". No início, uma frase escrita a caneta: "Luz Vermelha ama só a Deus", afirmação desmontada numa das páginas finais: "Luz Vermelha não ama ninguém". Antes de ser reconduzido à cela, caminhando por um corredor mal iluminado, voltou-se para mim e prenunciou: "Hoje você vai sonhar comigo". Não deu outra.

Numa Remington da Casa de Custória escrevi o texto, transmitido ao jornal por telefone . Quatro meses depois recebi uma carta de João Acácio. Outras viriam, também endereçadas ao fotógrafo Newton Aguiar, meu parceiro naquela entrevista. Em todas, a mesma despedida: "Respeitosamente, assino-me; João Acácio Pereira da Costa, o saudoso e inesquecível ex-Bandido da Luz Vermelha".

Agradecia pela visita, uma das raras recebidas em vinte anos na prisão, seis deles passados no Manicômio Judiciário. Depois do Estadão, ele contava, até Gil Gomes o havia procurado com uma equipe da TV Record para uma “produção estupenda”. Alternando frases escritas com tinta azul e vermelha, desejou-me um Feliz Natal, “com todo conforto” e um cardápio variado, composto por “bananas, champanhe, uísque, chocolate, nozes e - por que não? - amendoins”.

Numa outra carta, o ex-Luz afirmou ter sido “positivamente o homem que bateu recorde nas paixões, nas perseveranças e na saudade que abalou corações”. E continuou: “Como homem de fabulosa fama internacional, sempre fui curioso e vivi uma vida historiada... Fui homem que passou para a galeria dos bandidos lendários, fui manchete de jornais e cheguei a ser recorde e sucesso de literatura”. Tudo isso até o dia em que alguma coisa aconteceu: “Entrei em eclipse lunar e solar, e assim, num duelo de titã entre o crime e a perfeição, vi que o crime não compensa”.

João Acácio ficou preso até 1997 e voltou para Joinville, a cidade natal, onde seria assassinado.

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Texto de Fernando Lichti Barros publicado pelo caderno Ilustríssima, da Folha de s. Paulo, em 27 de agosto de 2017.

domingo, 4 de setembro de 2022

Entre jazzistas e pés-de-valsa

Por FERNANDO LICHTI BARROS 

Ilustração: Caco Bressane

Lá vai Mário Edson, alto, magro, pensativo, caminhando pelo Centro. Da Avenida São Luiz enxerga a Galeria Metrópole, onde tocou nos últimos quatro anos; atravessa a Consolação e, na Martins Fontes, diminui o passo.

Não, definitivamente não é justo estar desempregado o músico entusiasmado, o professor que levou a um programa de tevê o coral da escola estadual da Vila Matilde para cantar Viola Enluarada com Os Cariocas, o iconoclasta que invadiu com um samba-exaltação o ultrabossanovista Juão Sebastião Bar.

Mário anda até a Rua Avanhandava. Entra no Jogral, reinaugurado neste ano de 1968, e pergunta se precisam de pianista. Precisam. No dia seguinte, ele estreia. Com o seu quarteto, passará a esquentar as noitadas ao lado do Trio Mocotó, Manezinho da Flauta, Adauto Santos, Leo Karam e outros artistas. Na porta, filas; na plateia abarrotada, estrangeiros atentos ao suingue local. Aparecem Erroll Garner, The Single Swingers, Michel Legrand e, sem negar-se a dar canjas bem temperadas, Oscar Peterson e Sarah Vaughan.

Natural que episódios assim aconteçam no Centro, o chão de encontros, trocas e fusões. Dizzy Gillespie que o diga. Em 1961, ele recebe cumprimentos e elogios após a apresentação do mais puro bebop no Teatro Record, mas quer mesmo é conhecer o teatro popular de Solano Trindade. Desejo atendido: no auditório da Rádio Eldorado, aonde é levado, ele fotografa o espetáculo e não resiste à percussão e à coreografia: integra-se ao maracatu, à batucada, ao frevo do grupo de Embu das Artes.

Ilustração: Caco Bressane
Não se preocupem os jazzófilos que, por uma ou outra razão, não conseguiram acompanhar Dizzy em sua passagem por São Paulo. Ele voltará. E, se fazem questão de ouvir som com sotaque norte-americano, nem precisam esperar. O saxofonista Herb Geller, que veio para cá com a orquestra de Benny Goodman, desgarrou-se. Está tocando no Stardust, na Praça Roosevelt.

Divirta-se, Herb. Caso seja acometido por tremores decorrentes de um sentimento nostálgico, procure o antídoto no Teatro de Arena. Toda segunda-feira é dedicada ao jazz. Lá, aproveite para observar os colegas brasileiros. A maioria cursou a escola dos bailes, dos discos, das retretas, do circo, das ruas, formação que os capacita a enveredar por todos os gêneros com personalidade e valentia. Observe aquele rapaz, o Carlos Alberto Alcântara: foi tintureiro, passou do cavaquinho e do banjo para o sax, fez bailes no interior do Paraná e de São Paulo com orquestras regidas pelo pai, e agora, ainda na faixa dos trinta anos, escolhe notas com a sensatez de um veterano.

Muitos outros músicos de cancha têm histórico de luta por aprendizagem e imersão no trabalho. Bauru, baritonista da orquestra de Dick Farney, tomou as primeiras lições com Dito Dezoito, coveiro e clarinetista em Potirendaba, no interior do estado. Odésio Jericó, antes de ser trompetista disputado pelas big bands, tocou em procissões e festas cívicas com a Philarmônica 21 de Setembro, em Petrolina, Pernambuco. Jovito abandonou sua especialidade, o bongô, e com a cara e a coragem tornou-se baterista na boate Lancaster. Mazinho, o menino de 15 anos que deixa boquiabertos os frequentadores de boliches e inferninhos com solos de sax alto, profissionalizou-se no Circo Rosário, na região de Ribeirão Preto.

Ilustração: Caco Bressane

Falta rememorar o caminho percorrido pelo trombonista Bil. Ex-sapateiro e lavador de cavalos, ele foi discípulo do maestro Brasiliano, da banda de Macaparana, em Pernambuco. Em Limoeiro, aperfeiçoou-se com Cazuzinha, pai de Severino Araújo; trabalhou em cabarés, em emissoras de rádio de Recife e João Pessoa; gravou com Jackson do Pandeiro e excursionou com o Circo Garcia. Em 54, desembarcou em São Paulo, contratado pela orquestra Clóvis Ely, atração do Clube OK, na Rua Conselheiro Nébias. Era um dos vários salões de dança do Centro.

No ano anterior, um deles, o Clube Elite 28 de Setembro, foi destruído pelo incêndio que matou 53 pessoas durante o Baile de Santo Antônio. Absorvida a tragédia, as pistas do Chuá, Caçamba, Cuba, Tropical, Lilás e várias outras continuaram cheias. Pé-de-valsa que se preze até hoje calça um pisante lustroso para dançar o puladinho no Som de Cristal, na Rego Freitas. Se do nada o tenorista Adolar tirar um Body and Soul emocionado, melhor: colam-se corpos e almas, em resposta à maravilha que, na mesma medida, a noite proporciona na gafieira ou no Teatro Municipal, onde Elizeth Cardoso, esplendorosa, canta Villa-Lobos, onde em cada arranjo Duke Ellington reafirma apreço à música, onde o Carnaval eclode com a orquestra de Osmar Milani.

Bil, o trombonista, por anos atuou em big bands como a de Milani. Lidera um naipe que faz até quatro sessões de gravação num mesmo dia. Pode estar, agora, num estúdio com a Banda Tropicalista de Rogério Duprat, divertindo-se em interpretações caricatas de clássicos do cancioneiro. Ou, com o maestro Portinho, registrando a base da balada em que Nelson Ned, certeiro, lembra que tudo, tudo passará. 

Sábio Ned. Se nada é para sempre, dancemos um chá-chá-chá. No palco do Avenida Danças, ali na Ipiranga, quando sobe a cortina vermelha, a orquestra começa a tocar.

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Da série Música no Ar: Um passeio pelo Centro na década de 1960, de Fernando Lichti Barros, publicado pelo Sesc 24 de Maio.

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sexta-feira, 2 de setembro de 2022

É preciso cantar

 Por FERNANDO LICHTI BARROS

Ilustração: Caco Bressane

Não se preocupe: a voz que você ouve enquanto abre o crediário não é a da sua consciência alertando para os riscos do endividamento. É, sim, o canto de Wilson Simonal, Altemar Dutra, Chico Buarque, Nara Leão, Martinha ou Erasmo Carlos. Agora mais relaxado, feliz com a camisola sanfonada ou o terno de tropical que comprou em prestações, você pode assistir ao show ali mesmo, na Clipper, a loja de departamentos do Largo de Santa Cecília.

Não se assuste: o que você vê no Ela, Cravo e Canela enquanto bebe um gim-tônica não são imagens delirantes do seu inconsciente, embaralhando liberação de costumes com refinada crítica ao autoritarismo. É, sim, um desfile de mulheres de topless ou a ante-estreia de Liberdade, Liberdade, a peça teatral de Millôr Fernandes e Flávio Rangel, em que Paulo Autran apresenta uma colagem de pensamentos de Garcia Lorca, Aristóteles, Tiradentes, Stanislaw Ponte Preta e Carlos Drummond de Andrade.

Assim como na Clipper, atividades diversas cabem no Ela, Cravo e Canela.  O forte do bar da Rua Major Sertório, porém, é a música. Isso ficou chancelado já na noite de inauguração, em 21 de abril de 1964. Sabe quem estava lá? Papudinho, Azeitona, Zinho e Cido Bianchi, trompete, baixo, bateria e piano em mãos insuspeitas. Não tivessem sido contratados para o evento, eles seguramente iriam tocar em outra freguesia. Ainda é grande a oferta de trabalho, apesar das piscadelas de sinal amarelo emitidas pela incipiente concorrência do som eletrônico que o Djalma’s, por exemplo, vai adotar. Ainda há, para completar, uma ala dos notívagos deixando-se cooptar pelo pijama de listras e as imagens em preto e branco da televisão.

Arrependam-se, traidores da causa. Saibam que a sua tibieza não impede a multiplicação das boates, nem o cortejo feito aos heróis da resistência com atrações musicais para todos os gostos. É só escolher o que vem por aí: Inezita Barroso e o Brasil rural no Jardim de Inverno Fasano, Bienvenido Granda e a dramaticidade latino-americana no Clube de Paris, Leny Eversong e a influência do jazz no Ela, Cravo e Canela, e na Oásis a previsão de público em delírio com Babalu na interpretação de Angela Maria. No Saloon, The Jet Blacks defendem as cores do iê-iê-iê, enquanto a bossa nova instrumental faz residência com o Esquema-3, de Claudio Slon, no Captain’s Bar; no Juão Sebastião Bar, com o quarteto de Ely Arcoverde, e na Baiuca com o Sansa Trio, de José Briamonte.

Ilustração: Caco Bressane
Pianista e arranjador, Briamonte é admirado por Johnny Alf. Não é pouca coisa. Johnny, a bossa em pessoa, semeia o gênero nas madrugadas da Pauliceia. Hoje ele está no Le Club, no Centro Metropolitano de Compras, o nome oficial da Galeria Metrópole. Para sucedê-lo, sempre haverá um nome expressivo, uma artista com os atributos de Sylvinha Telles. Musicalidade, afinação, pronúncia, às vezes um leve e sensual arranhado na voz, o charme evidente no LP gravado nos Estados Unidos com o guitarrista Barney Kessel, tudo isso sobressai no show de Sylvinha, no Le Club.

Pode ser que a casa esteja lotada, mas nunca fica ao desamparo quem anda sob os plátanos da Avenida São Luiz em direção à Galeria Metrópole. São 32 as casas noturnas, de tórridos inferninhos a ambientes que, para sugerir luxuosidade, tanto recorrem à luz indireta de abajures e ao conforto dos estofados como aos tristes pingos de um chafariz.

The Open Door, Aquela Rosa Amarela, Bar Bossinha, Eve, Canto Terzo, O Barquinho, e assim vão as boates em serpenteio pelos pavimentos da galeria. No ar, um pot-pourri de estilos e gerações que junta Jorge Costa, Gilberto Gil, Claudia Barroso, Silvia Goes, José Roberto Beltrami, Modern Tropical Quintet e outros intérpretes.

Aos menos abastados, uma dica: quando o estômago roncar, deem uma chegada ao Sandchurra, no subsolo. Preços módicos e porções generosas. Com jeitinho, pendura-se a conta. Melhor ainda, fica perto do Jogral, para onde se encaminha um senhor que usa bigode e passa o dia mergulhado em estudos herpetológicos.

Ilustração: Caco Bressane
O Jogral é o bar do compositor Luiz Carlos Paraná, que toma leite enquanto os amigos emborcam biritas aos hectolitros. E o senhor de bigode, quem é? Alojado no bar de que é um dos mais assíduos frequentadores, ele deixa de ser o professor doutor que veste jaleco no Museu de Zoologia da USP e se transforma num PhD das artes boêmias. Paulo Vanzolini aprecia a cachaça com gelo servida pelo garçom Antoninho, tamborila na caixa de fósforos e, com olhos de cronista, utiliza em Ronda e Praça Clóvis cenários de uma cidade onde, aliás, as transformações são constantes. Uma delas desagrada ao público do Jogral: a galeria, em 67, parece outra, mais agitada, mais ruidosa.

A partir do ano seguinte, ao passar pelo nº 16 da Rua Avanhandava, não se espante: as vozes que lhe soam familiares podem ser, sim, de Clementina de Jesus, Adoniran Barbosa, Luiz Gonzaga ou Lupicínio Rodrigues. No novo Jogral, em todo lugar, mais que nunca é preciso cantar. 

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Da série Música no Ar: Um passeio pelo Centro na década de 1960, de Fernando Lichti Barros, publicada pelo Sesc 24 de Maio.

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quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Juão é todo bossa

 Por FERNANDO LICHTI BARROS

Ilustração: Caco Bressane
A tardinha cai, os mais precavidos telefonam para 37-6876, reservam mesa e, num doce balanço a caminho do bar, aproximam-se da esquina da Rua Major Sertório com a Dona Veridiana. Agora, é só entrar no Juão Sebastião. Aqui, dizem, é mais que uma casa noturna: é um templo, todo santo dia aberto aos devotos da bossa nova.

Na noite de 9 de janeiro de 1963, o sacerdote é Pedrinho Mattar. No piano de cauda, acompanhado por baixo e bateria, ele celebra a cerimônia num palco pequeno, à esquerda de quem entra. Sobe a temperatura, mas isso é apenas o começo. Cheia de graça, Claudete Soares junta-se ao trio. O Juão pega fogo.

Fazer música com liberdade dá nisso. Então, que nas suas asas venham Leny Andrade, Maria Odete e Ana Lúcia; que venham Os Cariocas, Taiguara e Geraldo Vandré; que aportem instrumentistas de safras variadas. Entre os mais maduros está um ex-zagueiro do Nacional Atlético Clube, o trompetista Buda. Além de integrar a orquestra de Sylvio Mazzucca, ele faz parte d´Os Cincopados, adeptos da vertente da bossa que mais tarde será chamada samba-jazz. Mais jovens, e tocando de maneira igualmente desassombrada, Cesar Mariano, Airto Moreira e Humberto Clayber formam o Sambalanço Trio, outra atração da casa.

Quem sempre aparece é um estudante de arquitetura que constrói poesias e as emoldura com canções. Já mostrou algumas aqui no Juão. Ele, Chico Buarque de Hollanda, vai registrar duas a convite da RGE. A gravadora acumula sucessos. Tem no currículo Estão Voltando as Flores, com Helena de Lima; Dindi, com Agostinho dos Santos, e Alguém Me Disse, com Maysa, lançamentos de 1962. Agora, em 65, vai repetir a dose com Chico.

Ilustração: Caco Bressane

À espera do compositor, no estúdio Pauta, está o quinteto de Luiz Loy. O grupo é afiado na arte do acompanhamento: na TV Record, atua ao lado de Elis Regina e Jair Rodrigues n´O Fino da Bossa, e de Elizeth Cardoso e Cyro Monteiro no Bossaudade, revezando-se com o regional de Caçulinha. Também participa de programas especiais e, nos ensaios feitos às pressas, atende com paciência e empenho às reivindicações feitas sem parcimônia por cantores – coisas do tipo introdução ad libtum, solo em três por quatro, ralentando na volta, com final apoteótico. Quem disse que vida de músico é fácil?

Muito bem: Loy e seus companheiros estão prontos para o trabalho. Aceitaram fazê-lo por um preço camarada, metade do que costumam cobrar, mas o resultado será compensador. Chico deixa o violão a cargo de um amigo, Toquinho. A um sinal de Stelio, o técnico de som, começa a ganhar forma o compacto simples – de um lado, Olê, Olá; do outro, Meu Refrão. A parceria rende, no ano seguinte, um LP do quinteto inteiramente dedicado a músicas de Chico, com direito a elogios do compositor na contracapa. Mais um disco da RGE, gravado nesse mesmo lugar, na esquina da Rua Major Quedinho com Santo Antônio.

Assim como as boates e os salões de baile, os estúdios preferem o Centro e as proximidades. Dois exemplos: o Magison, onde Hector Costita fez Impacto, fica na Barão de Itapetininga. O da RCA Victor, onde Os Incríveis vão gravar O Vendedor de Bananas, está na Dona Veridiana, a quatro quarteirões do Juão Sebastião, esse reduto de intelectuais na flor da juventude que, se quiserem, podem dar um pulo no Clubinho.

O Clube dos Artistas e Amigos da Arte – para os íntimos, Clubinho – foi fundado em 1945 e passou por dois endereços antes de fixar-se no subsolo do Instituto dos Arquitetos do Brasil, na Bento Freitas. Promove exposições, noites de autógrafos, bailes, shows; é onde convivem pintores, escritores, compositores. Corre noite adentro que lá Paulo Vanzolini começou a escrever Volta Por Cima, e Caymmi compôs Saudade da Bahia. Verdade ou não, o fato é que o Clubinho reúne, entre os habitués, criadores de telas, melodias e textos formidáveis. É o local indicado para Pablo Neruda conceder entrevista coletiva e falar sobre literatura e política em setembro de 1968. Ano turbulento, esse. Três meses depois é promulgado o Ato Institucional nº 5, que deságua em práticas visceralmente opostas aos abraços, beijinhos e carinhos sem ter fim almejados por Vinicius de Moraes em Chega de Saudade.

Músicos têm que dançar miudinho. Na década seguinte, serão obrigados a comparecer uma vez por ano ao prédio da Polícia Federal, na Rua Xavier de Toledo, para renovar uma carteira expedida pelo Departamento de Censura de Diversões Públicas. Não há, porém, documento que faça subir o prestígio da categoria ante a máquina do Estado. Faz tempo que o Ponto dos Músicos, na São João com Ipiranga, recebe visitas de policiais cujo humor em nada coincide com o reinante, digamos, no Juão, em 25 de maio de 64.

Ilustração: Caco Bressane

Naquela noite, correram para o bar o Zimbo Trio, o conjunto de Walter Wanderley, Rosinha de Valença, Sérgio Mendes, Oscar Castro Neves e Edson Machado. Foram comemorar o êxito d´O Fino da Bossa, um show de três horas que o Centro Acadêmico XI de Agosto organizou no Teatro Paramount e deu origem ao programa de tevê.

O Juão, de novo, acabou em festa.

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Da série Música no Ar: Um passeio pelo Centro na década de 1960, de Fernando Lichti Barros, publicada pelo Sesc 24 de Maio.


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segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Boca do Luxo e dos prazeres

Por FERNANDO LICHTI BARROS

Ilustração: Caco Bressane     

Sejamos francos: mais de uma vez a finesse da Oásis foi sacudida pela troca de bofetões entre playboys encharcados de soberba e uísque importado. Reina, porém, a civilidade na rotina da boate, localizada na Rua Sete de Abril, esquina com a Praça da República. Poderosos industriais, pomposas madames, intelectuais notáveis, todos são recepcionados com a mesma polidez pelo porteiro Divino.

Ao sair do subsolo do Edifício Esther, onde funciona a Oásis, esse público elitizado tem, não longe dali, outro endereço à sua espera. No nº 106 da Rua Major Sertório, o Michel Bar, a exemplo da concorrente, oferece música de primeira. Lá está o quarteto de Walter Wanderley, em 1959, na única vez em que Dolores Duran apresenta-se em São Paulo. No início dos anos 60, outros shows arrasadores virão, com Antonio Carlos Jobim, Lúcio Alves e Ella Fitzgerald. A vizinha La Vie en Rose mantém, da mesma forma, uma sequência estelar, com artistas do nível de Elza Soares, Agostinho dos Santos e Isaurinha Garcia.

Brotam boates no trecho demarcado pela Rua da Consolação e o Largo do Arouche, entrando pela Vila Buarque. Quase todas atraem a clientela com acenos hipnotizantes. A área, identificada como Boca do Luxo, é um paraíso salpicado de inferninhos. No mais tradicional, Teteia, na Rua Araújo, música ininterrupta acalenta encontros furtivos.

Menos discretas, outras boates ostentam garotas de programa, em ambiente propício a conversas sussurrantes, ao consumo de coquetéis coloridos e à aragem de melodias que tanto levam ao devaneio como à empolgação. A sensualidade é a vocação da Boca. A ela não resistirão nem mesmo o Michel e a  La Vie en Rose.

Recém-chegado do Rio Grande do Sul, Nenê gosta de inovar no seu instrumento, a bateria. Brevemente, ele será convidado a integrar os grupos de Hermeto e Gismonti, mas, por enquanto, precisa tocar de maneira contida. Garante, assim, cachê, espaguete e frango ensopado num inferninho escondido na Rego Freitas.

Ilustração: Caco Bressanee
Nenê mora na Pensão Adriana. Outros músicos vivem nessa hospedaria da Rua Marquês de Itu, entre eles o guitarrista Ary Piassarollo, o pianista Aloisio Pontes, o compositor Taiguara e um rapaz de poucas palavras, que veio de Minas e toca baixo acústico ali por perto. Um dia, num quarto da Adriana, alguém lhe pede para mostrar algumas das suas composições. São pérolas cantadas por uma voz incomum. O moço tímido, Milton Nascimento, logo deixará para trás o universo constituído pela Dakar, Galo Vermelho, La Ronde e demais pontos a luzir na noite da Boca.

No mapa da região destaca-se a La Licorne. Fica na Major Sertório, quase esquina com a Vila Nova, e não exala perfume barato. Pelo seu espaço, equipado com jogos de sofás, desfilam mulheres fatais, disponíveis ao jogo da sedução em troca de dinheiro alto. A música completa o quadro. Em 1970, Natan Marques, que já foi do iê-iê-iê e fará parte do grupo de Elis Regina, a tudo assiste enquanto extrai acordes bonitos da guitarra.

Na Bento Freitas, a Black and White opera em faixa de maior amplitude. Apesar de ombreada em anúncios de jornal aos lugares preferidos da grã-finagem, como a Baiuca, a casa recebe, democraticamente, de sóbrios casais a gente em busca de aventuras apimentadas. Em 62, tocam Oliveira e Seus Black Boys. Dois anos mais tarde, desatento aos ventos ditatoriais que golpeiam o país, o quinteto enfrenta horas de aperto. O motivo: uma versão do Hino Nacional feita em ritmo de twist, durante um baile em Santo André, segundo noticia o Diário da Noite.

Instala-se o quiproquó. Entram no caso a Secretaria da Segurança Pública, o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) e o II Exército. A Ordem dos Músicos abre processo “ético-profissional” para apurar esse  “pleno desrespeito à Pátria”. Convoca Oliveira e sua turma para prestar depoimento, e ainda ameaça recorrer às autoridades civis e militares se eles não comparecerem à entidade. Ao final, fica patenteado o ridículo da patriotada: confundiu-se com um trecho do hino o improviso feito pelo guitarrista Demercílio em American Patrol, do repertório utilizado por Glenn Miller para animar as tropas dos Estados Unidos na Segunda Guerra.

llustração: Caco Bressane

Melhor voltar à Boca, onde há assuntos mais agradáveis a tratar. Por exemplo, o coqueiro de Itapoã, a moreninha da sandália de pompom grená, o mar que é bonito, quebra na praia e, pelo timbre encorpado de Dorival Caymmi, invade o Club de Paris, em frente à Teteia. Agende-se: em 1966, a partir de 12 de junho, ele, o autor de tantas preciosidades, lá estará durante uma semana, sempre a partir das duas da manhã.

Já que a noite é para os fortes, não se assuste com o horário marcado. Vá antes à Rua Teodoro Baima. No Teatro de Arena, assista à saga de Zumbi, de Guarnieri e Boal, e ouça a trilha de Edu Lobo, tocada por Theo de Barros, Anunciação e Zé Bicão. Depois, passe no bar Redondo, defronte ao Arena. Às vezes está por ali Caetano Veloso, que inscreveu Um dia no 2º Festival de Música Popular Brasileira. Pronto: chegou a hora de ouvir Caymmi.

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Da série Música no Ar: Um passeio pelo Centro na década de 1960, de Fernando Lichti Barros, publicada pelo Sesc 24 de Maio.

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sábado, 27 de agosto de 2022

Um grito: iê-iê-iê

Por FERNANDO LICHTI BARROS

                     lustração: Caco Bressane

No princípio era música. Depois, fogão, máquina de lavar roupa e abotoadura também passaram a se chamar bossa nova. Agora é o iê-iê-iê que impulsiona vendas. Cola-se a calçados, chaveiros, calças, bolsas e outros produtos a atitude jovial e descomprometida que a nova onda sintetiza e propaga.

O iê-iê-iê é o grito do momento. É uma brasa. Suas melodias ecoam na parada de sucessos, nas festas, nas casas noturnas, em programas de televisão. Do 22º andar do Edifício Martinelli, a Ordem dos Músicos observa com desconforto o fenômeno desestabilizador do modelo que dava às orquestras os maiores nacos dos contratos para a animação de bailes. A entidade atribui essa mudança à crescente popularidade de pequenos conjuntos, formados por instrumentistas apenas intuitivos. Olhando para partituras, a maioria, de fato, não decifra sequer uma colcheia.

A Ordem, então, declara guerra aos galanteadores de garotas papo-firme, imprudentes motoristas que descem a Rua Augusta a 120 por hora e querem que vá tudo pro inferno. A arma utilizada é a exigência do exame para a liberação da carteira azul, passaporte para o exercício da profissão. Netinho e Nenê, d’Os Incríveis, não passam na avaliação. Nem Bruno e Dedé, acompanhadores de Roberto Carlos. Distribuídas às pencas, as reprovações viram notícia de jornal.

     Ilustração: Caco Bressane

Contorna-se o problema com a distribuição de carteiras com validade provisória. Afinal, a Jovem Guarda, como passa a ser denominada a turma que utiliza poucos acordes para contar histórias de amor, é uma importante frente de trabalho. E, apesar da birra da Ordem, o trânsito entre gêneros não incomoda boa parcela dos profissionais, detentores ou não de conhecimentos teóricos. Roberto Caldeira dos Santos, por exemplo, é do time dos intuitivos. Começou com The Vampires e The Jet Blacks, pioneiros do rock e do twist em São Paulo. Depois, abraçado ao contrabaixo acústico, incursionou pela bossa nova e o jazz com o pianista Mario Edson, na Galeria Metrópole. De volta à origem, hoje rebatizado Bobby de Carlo, assenta o tijolinho que faltava na construção do estilo campeão de vendagens.

Bobby é amigo de um saxofonista que, igualmente, passeia por diferentes searas. É Nestico, autor do solo rouco em Rua Augusta. Também ex-integrante dos Jet Blacks, certa vez ele ouviu, na Praça Roosevelt, uma frase marcante: “Quem nasceu pra tocar tem que tocar”, disse-lhe Zé Bicão, cantor, pianista, baixista e arranjador.

O saxofonista segue o preceito, seja como arrojado improvisador jazzístico, seja como participante do RC-7. Ao seu lado, no primeiro naipe de sopros de Roberto Carlos, estão o trombonista Raul de Souza e o trompetista Maguinho. Com a carteira azul da Ordem no bolso, eles produzem a metaleira que brilha em Quando e outros hits do proclamado rei da juventude.

Maguinho já atuou em orquestras e em boates do Centro. Na Chicote, tocou com o pianista Wanderley Medeiros, que, em seguida, se transferiu para o Cave. Mais tarde, Wanderley gravou bossas no LP de estreia do Milton Banana Trio, e atualmente é o organista do grupo de Roberto.

                        Ilustração: Caco Bressane
Donos de técnica rigorosa são sempre bem-vindos ao iê-iê-iê. Olmir Stocker, o guitarrista das harmonias bem elaboradas, tantas noites ouvidas no La Vie em Rose e na Oásis, agora faz parte dos Wandecos, o conjunto de Wanderléa. Mais ainda, abastece o repertório da Jovem Guarda com O Caderninho e outras canções plenas de ingenuidade, como Meu Vestidinho, composta em parceria com Nilton Siqueira.

Antes de se incorporar aos Wandecos, Nilton, baixista, também oriundo das boates do Centro, havia fundado The Cats, de curta trajetória. Aos 14 anos, nas domingueiras do Clube Pinheiros, Lanny Gordin, um dos componentes do grupo, demonstrava assombroso talento. Lanny está crescido, e dá canjas no restaurante Stardust. Faz solos libertários na guitarra. Recentemente, o instrumento foi declarado inimigo da brasilidade. Tido como símbolo da dominação ianque, motivou a realização de uma passeata que saiu do Largo São Francisco e foi dar em nada.

É difícil condenar ao limbo seis cordas de aço que tantos serviços vêm prestando à música em geral. Elas estiveram no LP Samba Irresistível, de Casé e Seu Conjunto, e no playback de A Praia, feito por The Jordans no estúdio da Gravodisc para Agnaldo Rayol deitar o vozeirão. Na Augusta, as guitarras estão com Os Impossíveis, na boate Saloom. Ali perto, na Consolação, com Renato e Seus Blue Caps, na TV Record. Na Excelsior, com Os Brasas, Mutantes, Os Cardeais, e, na Tupi, com Os Brasões no caldeirão chamado Divino Maravilhoso.  

Os Brasões, às vezes, convocam o trompetista Branco como reforço. Ele veste a camisa estampada, a calça saint tropez e as botas  que lhe entregam, grava o programa e depois, no restaurante e casa de shows O Beco, na Rua Bela Cintra, troca o figurino tropicalista por terno e gravata. Música é ofício.

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Da série Música no Ar: Um passeio pelo Centro na década de 1960, de Fernando Lichti Barros, publicada pelo Sesc 24 de Maio.


https://open.spotify.com/playlist/11TgW9eZDRkITcxdLbKqM6

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Músicos: dois Pontos

Por FERNANDO LICHTI BARROS

       Ilustração: Caco Bressane

Precisa de um trombonista que bata o olho na partitura e saia tocando com o naipe de sopros? Um guitarrista que dispensa ensaio? Um cantor com repertório para daqui a pouco enfrentar a primeira de quatro noites de Carnaval? Vá ao Ponto dos Músicos, na Praça da Sé. Você pode encontrá-los entre o Marco Zero e a escadaria da Catedral.

Na Sé ficam os “avulsos”, músicos mais afeitos aos serviços eventuais, de última hora. Foi lá, na década de 1950, que o maestro Roberto Ferri contratou um adolescente, Lambari, para tocar em três bailes. O garoto tirava do sax alto um som bonito, bem definido. Não tardou a ir para a orquestra de Sylvio Mazzuca, uma das várias em atividade em São Paulo.

Integrantes de trupes como a de Mazzuca – as de Osmar Milani, Carlos Piper, Simonetti, Elcio Alvarez, Pocho e Erlon Chaves, por exemplo – têm outro local para se encontrar, também chamado Ponto dos Músicos. É a esquina da São João com Ipiranga, defronte a um bar, na diagonal do Brahma.  

Mas não apenas o pessoal dessas big bands converge para lá. Aparecem instrumentistas em geral, os atuantes com regularidade nas boates e estúdios de gravação perto dali e os que buscam colocação ou se habilitam a fazer substituições. No Ponto, trocam informações, tomam um trago, atualizam-se sobre a dinâmica da indústria fonográfica, que agora, no decorrer dos anos 60, anda de olho na música instrumental.

Na esquina não falta assunto. Saiu o LP de Heraldo do Monte. Hector Costita viajou para o Rio para gravar com Sergio Mendes. Ouviu Projeção, de Luiz Chaves? Vale a pena: pela primeira vez no Brasil, o protagonismo é dado a um contrabaixista. Cadê o Renato Perez, sax barítono? Foi morar no interior. O Walter Wanderley ainda está por aqui, esbanjando suingue no órgão Hammond, mas pensando em ir embora pros Estados Unidos. Cyro Pereira e Mario Albanese inventaram uma bossa em cinco tempos, o jequibau.

Ilustração: Caco Bressane

O ruído do trânsito no Centro é um dos sinais do pacto firmado às cegas pela cidade com o crescimento. As conversas intermináveis se desdobram na esquina. Anoitece e, dentro do bar, um rapaz fixa o olhar no copo em repouso sobre o balcão. Ouve muito, responde com reticências. Chama-se Casé. A respeito dele contam-se maravilhas. No seu disco, Samba Irresistível, numa faixa, improvisa ferozmente ao sax; numa outra, como clarinetista, alcança a mansidão dos monges.   

Alguém o observa a distância. Dom Salvador, pianista recém-chegado a São Paulo, não ousa se aproximar. Por enquanto, trabalha num cabaré encravado numa rua paralela à Rio Branco, mas logo estará com Oliveira e Seus Black Boys no Black & White, na Rua Bento Freitas, e numa série de LPs, Travessuras Musicais. Ele é da turma que vem promovendo a mistura de samba com jazz. Muito em breve migrará para o Rio de Janeiro. Vai usar o tempero com o Copa Trio.

Formado em Campinas, no mesmo conservatório onde Salvador estudou, Laercio de Freitas faz escala no Ponto antes de iniciar ao piano a jornada na Baiuca. Uma agenda febril o aguarda nos próximos anos: jingles, trilhas de cinema, bailes, temporada em navio. Não menos intensa é a rotina dos que atuam nas big bands. Chegam a cumprir maratonas de sessenta, oitenta festas de formatura. Ao final, retornam ao cruzamento da São João com a Ipiranga. Como resistir ao carteado e à sinuca no Clube Sereno, ao sanduíche de pernil na padaria Radiação, aos longos diálogos no Ponto?

Mais informes: Edgard Gianullo acompanhou a Nara com um violão ousado num samba do Zé Keti, o Opinião. Bateu em 40 mil cruzeiros o salário de Luiz Mello no Djalma’s. Foi lá que ele e o Sambossa 5 se apresentaram com Silvio Cesar e uma cantora gaúcha, Elis Regina, para meia dúzia de gatos pingados. Sabá, Cido e Toninho, do Jongo Trio, cantando Feitinha pro poeta: o máximo! Veja a estica do Papudinho, trompetista. Ele manda fazer os ternos na alfaiataria do D’Carlos. O Bil, trombone, também. E alguém se lembra dos sapatos azuis que o quinteto do Breno Sauer usava no La Vie en Rose? Sapatos? Tem um pianista que não usa, no bar do Hotel Comodoro, ali na Duque de Caxias.

Ilustração: Caco Bressane
Correção importante: não é um, é uma pianista. Nininha Rocha, mineira de Uberlândia, morena, bonita, usa batom cor da pele, veste-se bem e impõe-se com indiscutível competência no meio profissional dominado por homens. Os jornais já elogiam a “pianista dos pés descalços”, futura atração da TV Excelsior, e noticiam a estreia do Zimbo Trio na Oásis, a badalada boate da Sete de Abril. Rubinho, Amilton e Luiz ao lado de Norma Benguell, lindíssima dentro de um vestido assinado por Denner. O show se repete às terças-feiras, menos na de 31 de março. O ano é 1964. A cidade está quase vazia.

Agitados anos 60. A música imita a vida. Transforma-se. Cai o volume de trabalho das orquestras e aumenta a procura por formações menores, aqueles conjuntos da meninada que se apoia em equipamentos potentes e nos novos interesses do público. No Ponto, fala-se que a culpa é dos Beatles.

O iê-iê-iê está no ar.

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Da série Música no Ar: Um passeio pelo Centro na década de 1960, de Fernando Lichti Barros, publicada pelo Sesc 24 de Maio.