terça-feira, 30 de março de 2021

Uma noite em 64



 Norma: show com o Zimbo cancelado na Oásis

Por FERNANDO LICHTI BARROS

Enquanto o país é arremessado em direção a um túnel de horrores, poucos músicos comparecem aos seus locais de trabalho na noite chuvosa de 31 de março de 1964. 

Uma diminuta resistência boêmia bate ponto nas boates e inferninhos de São Paulo. 

Frustra-se quem vai à Oásis, na Rua Sete de Abril: está cancelado o show de Norma Benguell. Duas semanas atrás, abrindo a temporada, ela surgiu, lindíssima, dentro de um vestido assinado por Dener. Fatal, cantou Samba de uma nota só em italiano, com o anteparo do recém-criado Zimbo Trio. 

Fosse numa outra terça-feira, a música desceria no Djalma´s pelas mãos de Rosinha de Valença e Walter Wanderley, e no Juão Sebastião Bar pela voz bossa nova de Telma, No La Vie em Rose, repousaria em serenata com Nilo Chagas, ex-integrante do Trio de Ouro.

Hoje, porém, nem os melhores acordes, nem as mais inspiradas melodias, nada teria garantido o movimento noturno. Em busca de informações, "todo mundo" preferiu ficar em casa, "de ouvido colado no rádio", segundo a nota que a Folha de S. Paulo publica dois dias depois.

 Não faz mal: para o Dia de Tiradentes, no mês que vem, anuncia-se o show de um quarteto na rua Major Sertório, 676. Papudinho, Cido Bianchi, Azeitona e Zinho tocarão trompete, piano, baixo e bateria na abertura do Ela Cravo e Canela. 

Há música no ar. 

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arlos Piper E Papudinho - Um Piston Bossa Nova - 

Video for Papudinho Piston Bossa Nova

quarta-feira, 17 de março de 2021

O poeta, o pianista e o guardador de carros

                                    

Romeu, agora septuagenário, entre Vinicius e Johnny

Por FERNANDO LICHTI BARROS

O porteiro Gunga Din estava de bom humor. Deixou o guardador de carros  atravessar os nove ou dez metros de corredor para espiar o que se passava lá dentro.

O menino tinha 15 anos; chamava-se Romeu Venancio. Ele se encostou à parede e finalmente viu o interior da boate Cave, na Rua da Consolação.

Casa cheia, esfumaçada, um templo frequentado por boêmios, artistas da bossa nova, do iê-iê-iê, gente da televisão, gente endinheirada ou nem tanto, tiras, jornalistas e um representante do Exército da Salvação, entre outras criaturas da noite.

Com o copo na mão, Vinicius de Moraes sai de uma das mesas, caminha até o pianista – era uma canja de Johnny Alf – e em voz baixa canta “Formosa”. Johnny ouve e logo estende um acolchoado de belos acordes para o samba, ainda inédito em disco naquele ano de 1965.

Romeu deixou a boate, esperou pelos trocados dos donos dos carros, e já amanhecia quando foi para a estação do Brás. Daquela vez ele não passaria o dia perambulando pelo Centro, não cochilaria por algumas horas sob o palco da Bon Soir, na Praça Roosevelt, nem tentaria uma vaga de figurante na TV Excelsior.

Queria reter na memória a cena, a música, o silêncio incomum feito pela plateia durante o presente oferecido por Vinicius e Johnny.

Tomou o trem de volta para casa, um barracão em Guaianases. Da janela avistou os campos de futebol da Zona Leste, e não lhe saia da cabeça aquela canção, a doce lembrança de que carinho não é ruim.


Vinicius de Moraes, Dorival Caymmi, Quarteto em Cy, e Conjunto Oscar Castro Never -