quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Juão é todo bossa

 Por FERNANDO LICHTI BARROS

Ilustração: Caco Bressane
A tardinha cai, os mais precavidos telefonam para 37-6876, reservam mesa e, num doce balanço a caminho do bar, aproximam-se da esquina da Rua Major Sertório com a Dona Veridiana. Agora, é só entrar no Juão Sebastião. Aqui, dizem, é mais que uma casa noturna: é um templo, todo santo dia aberto aos devotos da bossa nova.

Na noite de 9 de janeiro de 1963, o sacerdote é Pedrinho Mattar. No piano de cauda, acompanhado por baixo e bateria, ele celebra a cerimônia num palco pequeno, à esquerda de quem entra. Sobe a temperatura, mas isso é apenas o começo. Cheia de graça, Claudete Soares junta-se ao trio. O Juão pega fogo.

Fazer música com liberdade dá nisso. Então, que nas suas asas venham Leny Andrade, Maria Odete e Ana Lúcia; que venham Os Cariocas, Taiguara e Geraldo Vandré; que aportem instrumentistas de safras variadas. Entre os mais maduros está um ex-zagueiro do Nacional Atlético Clube, o trompetista Buda. Além de integrar a orquestra de Sylvio Mazzucca, ele faz parte d´Os Cincopados, adeptos da vertente da bossa que mais tarde será chamada samba-jazz. Mais jovens, e tocando de maneira igualmente desassombrada, Cesar Mariano, Airto Moreira e Humberto Clayber formam o Sambalanço Trio, outra atração da casa.

Quem sempre aparece é um estudante de arquitetura que constrói poesias e as emoldura com canções. Já mostrou algumas aqui no Juão. Ele, Chico Buarque de Hollanda, vai registrar duas a convite da RGE. A gravadora acumula sucessos. Tem no currículo Estão Voltando as Flores, com Helena de Lima; Dindi, com Agostinho dos Santos, e Alguém Me Disse, com Maysa, lançamentos de 1962. Agora, em 65, vai repetir a dose com Chico.

Ilustração: Caco Bressane

À espera do compositor, no estúdio Pauta, está o quinteto de Luiz Loy. O grupo é afiado na arte do acompanhamento: na TV Record, atua ao lado de Elis Regina e Jair Rodrigues n´O Fino da Bossa, e de Elizeth Cardoso e Cyro Monteiro no Bossaudade, revezando-se com o regional de Caçulinha. Também participa de programas especiais e, nos ensaios feitos às pressas, atende com paciência e empenho às reivindicações feitas sem parcimônia por cantores – coisas do tipo introdução ad libtum, solo em três por quatro, ralentando na volta, com final apoteótico. Quem disse que vida de músico é fácil?

Muito bem: Loy e seus companheiros estão prontos para o trabalho. Aceitaram fazê-lo por um preço camarada, metade do que costumam cobrar, mas o resultado será compensador. Chico deixa o violão a cargo de um amigo, Toquinho. A um sinal de Stelio, o técnico de som, começa a ganhar forma o compacto simples – de um lado, Olê, Olá; do outro, Meu Refrão. A parceria rende, no ano seguinte, um LP do quinteto inteiramente dedicado a músicas de Chico, com direito a elogios do compositor na contracapa. Mais um disco da RGE, gravado nesse mesmo lugar, na esquina da Rua Major Quedinho com Santo Antônio.

Assim como as boates e os salões de baile, os estúdios preferem o Centro e as proximidades. Dois exemplos: o Magison, onde Hector Costita fez Impacto, fica na Barão de Itapetininga. O da RCA Victor, onde Os Incríveis vão gravar O Vendedor de Bananas, está na Dona Veridiana, a quatro quarteirões do Juão Sebastião, esse reduto de intelectuais na flor da juventude que, se quiserem, podem dar um pulo no Clubinho.

O Clube dos Artistas e Amigos da Arte – para os íntimos, Clubinho – foi fundado em 1945 e passou por dois endereços antes de fixar-se no subsolo do Instituto dos Arquitetos do Brasil, na Bento Freitas. Promove exposições, noites de autógrafos, bailes, shows; é onde convivem pintores, escritores, compositores. Corre noite adentro que lá Paulo Vanzolini começou a escrever Volta Por Cima, e Caymmi compôs Saudade da Bahia. Verdade ou não, o fato é que o Clubinho reúne, entre os habitués, criadores de telas, melodias e textos formidáveis. É o local indicado para Pablo Neruda conceder entrevista coletiva e falar sobre literatura e política em setembro de 1968. Ano turbulento, esse. Três meses depois é promulgado o Ato Institucional nº 5, que deságua em práticas visceralmente opostas aos abraços, beijinhos e carinhos sem ter fim almejados por Vinicius de Moraes em Chega de Saudade.

Músicos têm que dançar miudinho. Na década seguinte, serão obrigados a comparecer uma vez por ano ao prédio da Polícia Federal, na Rua Xavier de Toledo, para renovar uma carteira expedida pelo Departamento de Censura de Diversões Públicas. Não há, porém, documento que faça subir o prestígio da categoria ante a máquina do Estado. Faz tempo que o Ponto dos Músicos, na São João com Ipiranga, recebe visitas de policiais cujo humor em nada coincide com o reinante, digamos, no Juão, em 25 de maio de 64.

Ilustração: Caco Bressane

Naquela noite, correram para o bar o Zimbo Trio, o conjunto de Walter Wanderley, Rosinha de Valença, Sérgio Mendes, Oscar Castro Neves e Edson Machado. Foram comemorar o êxito d´O Fino da Bossa, um show de três horas que o Centro Acadêmico XI de Agosto organizou no Teatro Paramount e deu origem ao programa de tevê.

O Juão, de novo, acabou em festa.

------------------------------------------------

Da série Música no Ar: Um passeio pelo Centro na década de 1960, de Fernando Lichti Barros, publicada pelo Sesc 24 de Maio.


https://open.spotify.com/playlist/6SsgQqwEBz8D4e24LCQud0?si=LXQz5nacSPC9d05LRzzeQw&utm_source=copy-link


segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Boca do Luxo e dos prazeres

Por FERNANDO LICHTI BARROS

Ilustração: Caco Bressane     

Sejamos francos: mais de uma vez a finesse da Oásis foi sacudida pela troca de bofetões entre playboys encharcados de soberba e uísque importado. Reina, porém, a civilidade na rotina da boate, localizada na Rua Sete de Abril, esquina com a Praça da República. Poderosos industriais, pomposas madames, intelectuais notáveis, todos são recepcionados com a mesma polidez pelo porteiro Divino.

Ao sair do subsolo do Edifício Esther, onde funciona a Oásis, esse público elitizado tem, não longe dali, outro endereço à sua espera. No nº 106 da Rua Major Sertório, o Michel Bar, a exemplo da concorrente, oferece música de primeira. Lá está o quarteto de Walter Wanderley, em 1959, na única vez em que Dolores Duran apresenta-se em São Paulo. No início dos anos 60, outros shows arrasadores virão, com Antonio Carlos Jobim, Lúcio Alves e Ella Fitzgerald. A vizinha La Vie en Rose mantém, da mesma forma, uma sequência estelar, com artistas do nível de Elza Soares, Agostinho dos Santos e Isaurinha Garcia.

Brotam boates no trecho demarcado pela Rua da Consolação e o Largo do Arouche, entrando pela Vila Buarque. Quase todas atraem a clientela com acenos hipnotizantes. A área, identificada como Boca do Luxo, é um paraíso salpicado de inferninhos. No mais tradicional, Teteia, na Rua Araújo, música ininterrupta acalenta encontros furtivos.

Menos discretas, outras boates ostentam garotas de programa, em ambiente propício a conversas sussurrantes, ao consumo de coquetéis coloridos e à aragem de melodias que tanto levam ao devaneio como à empolgação. A sensualidade é a vocação da Boca. A ela não resistirão nem mesmo o Michel e a  La Vie en Rose.

Recém-chegado do Rio Grande do Sul, Nenê gosta de inovar no seu instrumento, a bateria. Brevemente, ele será convidado a integrar os grupos de Hermeto e Gismonti, mas, por enquanto, precisa tocar de maneira contida. Garante, assim, cachê, espaguete e frango ensopado num inferninho escondido na Rego Freitas.

Ilustração: Caco Bressanee
Nenê mora na Pensão Adriana. Outros músicos vivem nessa hospedaria da Rua Marquês de Itu, entre eles o guitarrista Ary Piassarollo, o pianista Aloisio Pontes, o compositor Taiguara e um rapaz de poucas palavras, que veio de Minas e toca baixo acústico ali por perto. Um dia, num quarto da Adriana, alguém lhe pede para mostrar algumas das suas composições. São pérolas cantadas por uma voz incomum. O moço tímido, Milton Nascimento, logo deixará para trás o universo constituído pela Dakar, Galo Vermelho, La Ronde e demais pontos a luzir na noite da Boca.

No mapa da região destaca-se a La Licorne. Fica na Major Sertório, quase esquina com a Vila Nova, e não exala perfume barato. Pelo seu espaço, equipado com jogos de sofás, desfilam mulheres fatais, disponíveis ao jogo da sedução em troca de dinheiro alto. A música completa o quadro. Em 1970, Natan Marques, que já foi do iê-iê-iê e fará parte do grupo de Elis Regina, a tudo assiste enquanto extrai acordes bonitos da guitarra.

Na Bento Freitas, a Black and White opera em faixa de maior amplitude. Apesar de ombreada em anúncios de jornal aos lugares preferidos da grã-finagem, como a Baiuca, a casa recebe, democraticamente, de sóbrios casais a gente em busca de aventuras apimentadas. Em 62, tocam Oliveira e Seus Black Boys. Dois anos mais tarde, desatento aos ventos ditatoriais que golpeiam o país, o quinteto enfrenta horas de aperto. O motivo: uma versão do Hino Nacional feita em ritmo de twist, durante um baile em Santo André, segundo noticia o Diário da Noite.

Instala-se o quiproquó. Entram no caso a Secretaria da Segurança Pública, o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) e o II Exército. A Ordem dos Músicos abre processo “ético-profissional” para apurar esse  “pleno desrespeito à Pátria”. Convoca Oliveira e sua turma para prestar depoimento, e ainda ameaça recorrer às autoridades civis e militares se eles não comparecerem à entidade. Ao final, fica patenteado o ridículo da patriotada: confundiu-se com um trecho do hino o improviso feito pelo guitarrista Demercílio em American Patrol, do repertório utilizado por Glenn Miller para animar as tropas dos Estados Unidos na Segunda Guerra.

llustração: Caco Bressane

Melhor voltar à Boca, onde há assuntos mais agradáveis a tratar. Por exemplo, o coqueiro de Itapoã, a moreninha da sandália de pompom grená, o mar que é bonito, quebra na praia e, pelo timbre encorpado de Dorival Caymmi, invade o Club de Paris, em frente à Teteia. Agende-se: em 1966, a partir de 12 de junho, ele, o autor de tantas preciosidades, lá estará durante uma semana, sempre a partir das duas da manhã.

Já que a noite é para os fortes, não se assuste com o horário marcado. Vá antes à Rua Teodoro Baima. No Teatro de Arena, assista à saga de Zumbi, de Guarnieri e Boal, e ouça a trilha de Edu Lobo, tocada por Theo de Barros, Anunciação e Zé Bicão. Depois, passe no bar Redondo, defronte ao Arena. Às vezes está por ali Caetano Veloso, que inscreveu Um dia no 2º Festival de Música Popular Brasileira. Pronto: chegou a hora de ouvir Caymmi.

-------------------------------------------------------

Da série Música no Ar: Um passeio pelo Centro na década de 1960, de Fernando Lichti Barros, publicada pelo Sesc 24 de Maio.

https://open.spotify.com/playlist/0wkAu1jlYbptVSSzfSBOhB



sábado, 27 de agosto de 2022

Um grito: iê-iê-iê

Por FERNANDO LICHTI BARROS

                     lustração: Caco Bressane

No princípio era música. Depois, fogão, máquina de lavar roupa e abotoadura também passaram a se chamar bossa nova. Agora é o iê-iê-iê que impulsiona vendas. Cola-se a calçados, chaveiros, calças, bolsas e outros produtos a atitude jovial e descomprometida que a nova onda sintetiza e propaga.

O iê-iê-iê é o grito do momento. É uma brasa. Suas melodias ecoam na parada de sucessos, nas festas, nas casas noturnas, em programas de televisão. Do 22º andar do Edifício Martinelli, a Ordem dos Músicos observa com desconforto o fenômeno desestabilizador do modelo que dava às orquestras os maiores nacos dos contratos para a animação de bailes. A entidade atribui essa mudança à crescente popularidade de pequenos conjuntos, formados por instrumentistas apenas intuitivos. Olhando para partituras, a maioria, de fato, não decifra sequer uma colcheia.

A Ordem, então, declara guerra aos galanteadores de garotas papo-firme, imprudentes motoristas que descem a Rua Augusta a 120 por hora e querem que vá tudo pro inferno. A arma utilizada é a exigência do exame para a liberação da carteira azul, passaporte para o exercício da profissão. Netinho e Nenê, d’Os Incríveis, não passam na avaliação. Nem Bruno e Dedé, acompanhadores de Roberto Carlos. Distribuídas às pencas, as reprovações viram notícia de jornal.

     Ilustração: Caco Bressane

Contorna-se o problema com a distribuição de carteiras com validade provisória. Afinal, a Jovem Guarda, como passa a ser denominada a turma que utiliza poucos acordes para contar histórias de amor, é uma importante frente de trabalho. E, apesar da birra da Ordem, o trânsito entre gêneros não incomoda boa parcela dos profissionais, detentores ou não de conhecimentos teóricos. Roberto Caldeira dos Santos, por exemplo, é do time dos intuitivos. Começou com The Vampires e The Jet Blacks, pioneiros do rock e do twist em São Paulo. Depois, abraçado ao contrabaixo acústico, incursionou pela bossa nova e o jazz com o pianista Mario Edson, na Galeria Metrópole. De volta à origem, hoje rebatizado Bobby de Carlo, assenta o tijolinho que faltava na construção do estilo campeão de vendagens.

Bobby é amigo de um saxofonista que, igualmente, passeia por diferentes searas. É Nestico, autor do solo rouco em Rua Augusta. Também ex-integrante dos Jet Blacks, certa vez ele ouviu, na Praça Roosevelt, uma frase marcante: “Quem nasceu pra tocar tem que tocar”, disse-lhe Zé Bicão, cantor, pianista, baixista e arranjador.

O saxofonista segue o preceito, seja como arrojado improvisador jazzístico, seja como participante do RC-7. Ao seu lado, no primeiro naipe de sopros de Roberto Carlos, estão o trombonista Raul de Souza e o trompetista Maguinho. Com a carteira azul da Ordem no bolso, eles produzem a metaleira que brilha em Quando e outros hits do proclamado rei da juventude.

Maguinho já atuou em orquestras e em boates do Centro. Na Chicote, tocou com o pianista Wanderley Medeiros, que, em seguida, se transferiu para o Cave. Mais tarde, Wanderley gravou bossas no LP de estreia do Milton Banana Trio, e atualmente é o organista do grupo de Roberto.

                        Ilustração: Caco Bressane
Donos de técnica rigorosa são sempre bem-vindos ao iê-iê-iê. Olmir Stocker, o guitarrista das harmonias bem elaboradas, tantas noites ouvidas no La Vie em Rose e na Oásis, agora faz parte dos Wandecos, o conjunto de Wanderléa. Mais ainda, abastece o repertório da Jovem Guarda com O Caderninho e outras canções plenas de ingenuidade, como Meu Vestidinho, composta em parceria com Nilton Siqueira.

Antes de se incorporar aos Wandecos, Nilton, baixista, também oriundo das boates do Centro, havia fundado The Cats, de curta trajetória. Aos 14 anos, nas domingueiras do Clube Pinheiros, Lanny Gordin, um dos componentes do grupo, demonstrava assombroso talento. Lanny está crescido, e dá canjas no restaurante Stardust. Faz solos libertários na guitarra. Recentemente, o instrumento foi declarado inimigo da brasilidade. Tido como símbolo da dominação ianque, motivou a realização de uma passeata que saiu do Largo São Francisco e foi dar em nada.

É difícil condenar ao limbo seis cordas de aço que tantos serviços vêm prestando à música em geral. Elas estiveram no LP Samba Irresistível, de Casé e Seu Conjunto, e no playback de A Praia, feito por The Jordans no estúdio da Gravodisc para Agnaldo Rayol deitar o vozeirão. Na Augusta, as guitarras estão com Os Impossíveis, na boate Saloom. Ali perto, na Consolação, com Renato e Seus Blue Caps, na TV Record. Na Excelsior, com Os Brasas, Mutantes, Os Cardeais, e, na Tupi, com Os Brasões no caldeirão chamado Divino Maravilhoso.  

Os Brasões, às vezes, convocam o trompetista Branco como reforço. Ele veste a camisa estampada, a calça saint tropez e as botas  que lhe entregam, grava o programa e depois, no restaurante e casa de shows O Beco, na Rua Bela Cintra, troca o figurino tropicalista por terno e gravata. Música é ofício.

-------------------------------------------------

Da série Música no Ar: Um passeio pelo Centro na década de 1960, de Fernando Lichti Barros, publicada pelo Sesc 24 de Maio.


https://open.spotify.com/playlist/11TgW9eZDRkITcxdLbKqM6

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Músicos: dois Pontos

Por FERNANDO LICHTI BARROS

       Ilustração: Caco Bressane

Precisa de um trombonista que bata o olho na partitura e saia tocando com o naipe de sopros? Um guitarrista que dispensa ensaio? Um cantor com repertório para daqui a pouco enfrentar a primeira de quatro noites de Carnaval? Vá ao Ponto dos Músicos, na Praça da Sé. Você pode encontrá-los entre o Marco Zero e a escadaria da Catedral.

Na Sé ficam os “avulsos”, músicos mais afeitos aos serviços eventuais, de última hora. Foi lá, na década de 1950, que o maestro Roberto Ferri contratou um adolescente, Lambari, para tocar em três bailes. O garoto tirava do sax alto um som bonito, bem definido. Não tardou a ir para a orquestra de Sylvio Mazzuca, uma das várias em atividade em São Paulo.

Integrantes de trupes como a de Mazzuca – as de Osmar Milani, Carlos Piper, Simonetti, Elcio Alvarez, Pocho e Erlon Chaves, por exemplo – têm outro local para se encontrar, também chamado Ponto dos Músicos. É a esquina da São João com Ipiranga, defronte a um bar, na diagonal do Brahma.  

Mas não apenas o pessoal dessas big bands converge para lá. Aparecem instrumentistas em geral, os atuantes com regularidade nas boates e estúdios de gravação perto dali e os que buscam colocação ou se habilitam a fazer substituições. No Ponto, trocam informações, tomam um trago, atualizam-se sobre a dinâmica da indústria fonográfica, que agora, no decorrer dos anos 60, anda de olho na música instrumental.

Na esquina não falta assunto. Saiu o LP de Heraldo do Monte. Hector Costita viajou para o Rio para gravar com Sergio Mendes. Ouviu Projeção, de Luiz Chaves? Vale a pena: pela primeira vez no Brasil, o protagonismo é dado a um contrabaixista. Cadê o Renato Perez, sax barítono? Foi morar no interior. O Walter Wanderley ainda está por aqui, esbanjando suingue no órgão Hammond, mas pensando em ir embora pros Estados Unidos. Cyro Pereira e Mario Albanese inventaram uma bossa em cinco tempos, o jequibau.

Ilustração: Caco Bressane

O ruído do trânsito no Centro é um dos sinais do pacto firmado às cegas pela cidade com o crescimento. As conversas intermináveis se desdobram na esquina. Anoitece e, dentro do bar, um rapaz fixa o olhar no copo em repouso sobre o balcão. Ouve muito, responde com reticências. Chama-se Casé. A respeito dele contam-se maravilhas. No seu disco, Samba Irresistível, numa faixa, improvisa ferozmente ao sax; numa outra, como clarinetista, alcança a mansidão dos monges.   

Alguém o observa a distância. Dom Salvador, pianista recém-chegado a São Paulo, não ousa se aproximar. Por enquanto, trabalha num cabaré encravado numa rua paralela à Rio Branco, mas logo estará com Oliveira e Seus Black Boys no Black & White, na Rua Bento Freitas, e numa série de LPs, Travessuras Musicais. Ele é da turma que vem promovendo a mistura de samba com jazz. Muito em breve migrará para o Rio de Janeiro. Vai usar o tempero com o Copa Trio.

Formado em Campinas, no mesmo conservatório onde Salvador estudou, Laercio de Freitas faz escala no Ponto antes de iniciar ao piano a jornada na Baiuca. Uma agenda febril o aguarda nos próximos anos: jingles, trilhas de cinema, bailes, temporada em navio. Não menos intensa é a rotina dos que atuam nas big bands. Chegam a cumprir maratonas de sessenta, oitenta festas de formatura. Ao final, retornam ao cruzamento da São João com a Ipiranga. Como resistir ao carteado e à sinuca no Clube Sereno, ao sanduíche de pernil na padaria Radiação, aos longos diálogos no Ponto?

Mais informes: Edgard Gianullo acompanhou a Nara com um violão ousado num samba do Zé Keti, o Opinião. Bateu em 40 mil cruzeiros o salário de Luiz Mello no Djalma’s. Foi lá que ele e o Sambossa 5 se apresentaram com Silvio Cesar e uma cantora gaúcha, Elis Regina, para meia dúzia de gatos pingados. Sabá, Cido e Toninho, do Jongo Trio, cantando Feitinha pro poeta: o máximo! Veja a estica do Papudinho, trompetista. Ele manda fazer os ternos na alfaiataria do D’Carlos. O Bil, trombone, também. E alguém se lembra dos sapatos azuis que o quinteto do Breno Sauer usava no La Vie en Rose? Sapatos? Tem um pianista que não usa, no bar do Hotel Comodoro, ali na Duque de Caxias.

Ilustração: Caco Bressane
Correção importante: não é um, é uma pianista. Nininha Rocha, mineira de Uberlândia, morena, bonita, usa batom cor da pele, veste-se bem e impõe-se com indiscutível competência no meio profissional dominado por homens. Os jornais já elogiam a “pianista dos pés descalços”, futura atração da TV Excelsior, e noticiam a estreia do Zimbo Trio na Oásis, a badalada boate da Sete de Abril. Rubinho, Amilton e Luiz ao lado de Norma Benguell, lindíssima dentro de um vestido assinado por Denner. O show se repete às terças-feiras, menos na de 31 de março. O ano é 1964. A cidade está quase vazia.

Agitados anos 60. A música imita a vida. Transforma-se. Cai o volume de trabalho das orquestras e aumenta a procura por formações menores, aqueles conjuntos da meninada que se apoia em equipamentos potentes e nos novos interesses do público. No Ponto, fala-se que a culpa é dos Beatles.

O iê-iê-iê está no ar.

----------------------------------------------------------------

Da série Música no Ar: Um passeio pelo Centro na década de 1960, de Fernando Lichti Barros, publicada pelo Sesc 24 de Maio.

 

 

domingo, 21 de agosto de 2022

Da Excelsior ao Cave

 Por FERNANDO LICHTI BARROS

Ilustração: Caco Bressane

Estão perdoados os que buscam a Rua Nestor Pestana apenas para se refestelar com os capeletes, raviólis e escalopes do restaurante Gigetto. 

Se soubessem o que ocorre no entorno, esses aprendizes de boêmios acrescentariam ao roteiro a degustação de biscoitos finos. Teriam ido à vizinha Praça Roosevelt para ouvir, na Chicote, a voz de Dalva de Oliveira; no Murada’s, da Martins Fontes, o piano de Edmundo Villani-Cortes; na Nove de Julho, o trio de Manfredo Fest no bar do Hotel Cambridge.

Mas se achassem mais cômodo ater-se à Nestor Pestana, os não iniciados seriam da mesma forma agraciados pelas delícias, pelos mistérios da madrugada.

Um súbito estado de encantamento produzido por bemóis e sustenidos talvez os conduzisse, a poucos passos do restaurante, ao Moacyr’s, o bar administrado por Moacyr Peixoto, irmão de Cauby. É um sujeito boa-praça, músico habilidoso, mas gerenciar o negócio, dizem, não é exatamente o forte dele. Bordados da criação pianística, aplicados ao jazz, o entusiasmam bem mais do que compras, contabilidade e demais tarefas administrativas. Então, corram: será efêmera a existência da casa.

Não desistam caso o Moacyr’s tenha fechado as portas. Um outro espetáculo se descortina, quase em frente ao Gigetto. Impossível ignorá-lo: mede 48 metros de largura por oito de altura, leva a assinatura de Di Cavalcanti, chama-se Alegoria das Artes e está permanentemente exposto. Fica no alto da fachada do Teatro Cultura Artística, onde a música tem lugar de honra. 

Erudita ou popular, chame-a como quiser. Acima de vãs filosofias, ela comparece ao teatro desde a cerimônia de inauguração, em 1950, com Villa-Lobos, Camargo Guarnieri e a Sinfônica de São Paulo. Foi o início de uma sucessão de concertos memoráveis, de arrebatamentos iguais ao provocado, seis anos depois, pelo saxofonista Casé quando improvisou em Risque, de Ary Barroso, durante o 1º Festival de Jazz de São Paulo. E continua presente, a musa, nessa década de 60.

No Cultura Artística agora funciona a TV Excelsior. Locatária do teatro, a emissora se escancara para a música. Estrelas da importância de Elizeth Cardoso, Sylvia Telles, Alaíde Costa e Odete Lara brilham na programação. Desfilam compositores do porte de Dorival Caymmi, Ataulfo Alves e Lamartine Babo; cantores consagrados (Lucio Alves, Cyro Monteiro e Nelson Gonçalves, por exemplo) e os instrumentistas extraordinários das orquestras de Simonetti e Sylvio Mazzucca.

E que movimentação é aquela na porta? É Ray Charles tentando entrar, escoltado por homens da Guarda Civil e da Força Pública. Vai fazer show acompanhado por orquestra e coral. Outras formações, menores mas não menos charmosas, participam de programas comandados por Luiz Vieira, Moacyr Franco e Bibi Ferreira. Num deles, João Gilberto, reverencioso, com a fala mansa, derrete-se diante de Orlando Silva.

No final dos anos 50, o mesmo João andou aparecendo no Cave Bar. Deu canjas substanciais. Canções de Geraldo Pereira, de Antonio Carlos Jobim, um jeito de tocar e cantar que é só dele, e isso é muito natural.

                                                        Ilustração: Caco Bressane
Para se conhecer o Cave, basta caminhar pela Nestor rumo à Consolação. Dobre à direita. Perto da esquina, receba as boas-vindas do porteiro Gunga Din e atravesse um corredor de nove ou dez metros. Acomode-se. Conselho de amigo: antes da bebida, peça um picadinho, especialidade culinária da casa. É preciso preparar-se para a possibilidade de sofrer emoções fortes. Do contrário, poucos, na segunda metade da década de 50, teriam sobrevivido enquanto, em cada samba-canção, Maysa relatava amores desfeitos. Interpretações quentes, verdadeiras, e, nos olhos, os oceanos não pacíficos versejados por Manuel Bandeira.

Respire. Coisas assim não raro sucedem na Cave frente ao seu público diversificado, gente da televisão, gente endinheirada ou nem tanto, jornalistas, poetas, seresteiros, namorados.

Os motorizados deixam na rua os seus Simcas, DKWs ou Aero-Willys, sob a vigilância de um garoto que mora em Guaianazes e, em dias de sorte, atua como extra na TV Excelsior. Às vezes, dependendo do humor de Gunga Din, o menino (Romeu é o nome dele) consegue dar uma espiada lá dentro. Vê mesas pequenas, fumaça de cigarro, turmas em conversas animadas.

Eis que, não mais que de repente, Vinicius de Moraes dirige-se ao microfone e canta. O pianista ouve uma vez. Na segunda, estende um tapete de belos acordes e acompanha Formosa, um samba até então inédito em São Paulo.

Quer pistas sobre o pianista? É carioca. No Rio, tocou na Cantina do César, no bar do Hotel Plazza, gravou discos em 78 rotações. Veio para São Paulo e por aqui ficou. Gosta de Cole Porter e Gershwin, gosta do trabalho noturno. Não guarda dinheiro. Se a dureza aperta, ele dá aula ou ganha algum fazendo demonstração de partitura em loja. Modéstia desmedida. Nunca foi visto gabando-se de, na onda do vai e vem, ter-se antecipado à bossa nova ao compor uma canção em que faz o elogio do despojamento.

Johnny Alf é um rapaz de bem.

--------------------------------------------------------------

Da série Música no Ar: Um passeio pelo Centro na década de 1960, de Fernando Lichti Barros, publicada pelo Sesc 24 de Maio.


Sylvia Telles e Rosinha De Valença - "Samba Torto" (1966) (HQ). 12,242 views12K views. Oct 19, 2018. 549. Dislike. Share. Save.
YouTube · Fábio Souza · 19 de out. de 2018


https://open.spotify.com/playlist/3aCDEYgVfmuRBldOosIODK?si=jkgV67-MRRmR7BOIHpFe_g&utm_source=native-share-menu

sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Uma praça chamada Roosevelt

 Por FERNANDO LICHTI BARROS                      

                                              Ilustração: Caco Bressane

No homem que chega ao trabalho vestindo um blazer elegante parece refletir-se, neste começo da década de 1960, a modernidade há tempos prometida ao país. Urbanização, novos padrões de comportamento e estética, tudo repousa na figura dele, o pianista e cantor que estaciona em frente ao nº 118 da Praça Roosevelt.

Ali fica o Farney´s. Na vizinhança, cercando a igreja da Consolação, funcionam outras casas onde há bons serviços de bar e restaurante, com pista de dança, contrabaixo, bateria, piano, sopros, vozes. Música, muita música, ao vivo. É o que vai fazer Dick Farney, aquele que acaba de chegar ao nº 118. Dono de alto prestígio, tem vários discos gravados e carreira internacional.

Começa o show: números de jazz, balada, samba-canção, bossa nova, Tenderly,  Marina, Copacabana, Tereza da Praia, amores abraçados por um timbre aveludado. Mas não cabe só a Dick a missão de celebrar esses rituais dignos das graças de Santa Cecília, a padroeira dos músicos.

Desde a década anterior, acordes e solos inspirados pairam sobre a redondeza. Em 57, aqui mesmo, na Roosevelt, perto da Rua da Consolação, a Baiúca passou a ser invariavelmente associada a trilhas sonoras consistentes. Não tinha como dar errado: já na inauguração estavam a postos o pianista Chiquinho de Moraes e o baixista Azeitona. São exemplos de artistas capazes de dar brilho à meia-luz das boates e, embora raramente destacados nas fichas técnicas, de participar da criação de faixas destinadas a se tornar clássicos da discografia.

Depois de Chiquinho, numerosos craques no teclado passam pela Baiúca. Um deles: Walter Wanderley. Outros: Luiz Melo, Moacyr Peixoto, Fred Feld, Gogô, Pedrinho Mattar, Laércio de Freitas, Cesar Mariano, Pachá, Paulinho Preto, Plinio Metropolo, todos comprometidos com a arte sem, no entanto, jurar fidelidade ao contratante.

É que a noite ferve no Centro, pontilhada por boates que se espalham às dezenas no perímetro delimitado pelas avenidas Nove de Julho, Duque de Caxias e adjacências. Sobram propostas de trabalho aos músicos. Eles podem trocar de endereço a qualquer momento. Só é obrigatório volta e meia dar as caras na Roosevelt, o lugar perfeito para as canjas, para assistir aos shows dos colegas ou bater papo no balcão do bar Baiuquinha, pegado à Baiúca.

Ao público da praça se oferecem garrafas de uísque com o nome do comprador escrito no rótulo; risotos e filés nos cardápios; ambientes decorados e aconchegantes. Mas é a música, essa pantera, que dá à noite ares cosmopolitas. Seduz, flui, atravessa o descampado onde ficam parados os automóveis, atinge o outro lado da praça. Ali, na pequena Bon Soir, vira samba numa temporada de Noite Ilustrada ou harmonia bossanovista no violão de Geraldo Cunha.

Ilustração: Caco Bressane

Bem perto, a Chicote desfia uma programação tentadora. Começa com Robledo, que comanda um dos mais solicitados conjuntos da cidade. Prestes a sair em turnê – Portugal o espera -, ele pede a Luiz Loy para substituí-lo ao piano. Primeiro Loy, acordeonista, sente um frio na espinha; depois se encoraja a enfrentar a empreitada. Desvenda segredos do instrumento durante o expediente, e tem como parceiro de palco o saxofonista J.T. Meirelles, que logo, logo irá às paradas de sucesso à frente do Copa 5 com Chove chuva  e Mas que nada, cantadas por Jorge Ben.

É sortido o menu da Chicote. Você pode um dia apreciar os baiões e xotes irresistíveis de Venâncio e Corumba, na semana seguinte as requintadas melodias de Tito Madi e ainda dançar ao som do grupo liderado por Bolão, profissional versátil e por isso mesmo muito requisitado pelos estúdios. Qual dos casais que deslizam na pista não ouviu o seu solo de sax em Estúpido Cupido, gravada por Cely Campello em 59?

Os discos, o rádio e a televisão contemplam gêneros diversos – boleros derramados, rocks prenhes de candura, mambos sacolejantes, destemidas experimentações resultantes do recente flerte do samba com o jazz. Sem que a canção perca a majestade, a música instrumental brasileira ganha espaço e reconhecimento. Está em alta, sai em LPs, amanhece em jams, chama a atenção de estrelas que se apresentam em São Paulo, como Dizzy Gillespie.

É difícil resistir ao balanço, à evidente disposição de ousar. E, por falar nisso, o que acontece no Stardust, beirando a Rua Augusta? Geralmente, nada fora do previsto: um bem-comportado fundo musical. Mas quando o dono do restaurante se ausenta a surpresa põe a rotina abaixo. Às vezes com a ajuda dos pés e cotovelos, Coalhada, o pianista, estilhaça qualquer vestígio de ortodoxia.

Ele domina outros instrumentos com facilidade. Foi sanfoneiro na Rádio Jornal do Comércio, em Recife, e em São Paulo, antes de ser contratado pelo Stardust, permaneceu impassível acompanhando ao baixo acústico um repertório modorrento numa boate da Rua Araújo.

 Resista, Coalhada. Daqui a pouco você fará parte do Sambrasa Trio, do Quarteto Novo, e em 1973 terá seu nome impresso na capa de um LP: A música livre de Hermeto Paschoal.

---------------------------------------------------------------

Da série Música no Ar: Um passeio pelo Centro na década de 1960, de Fernando Lichti Barros, publicada pelo Sesc 24 de Maio.

https://open.spotify.com/playlist/6AQVniOj3XkG6kZ1zv0oB9