Por FERNANDO LICHTI BARROS
lustração: Caco Bressane |
No princípio era música. Depois, fogão, máquina de lavar roupa e abotoadura também passaram a se chamar bossa nova. Agora é o iê-iê-iê que impulsiona vendas. Cola-se a calçados, chaveiros, calças, bolsas e outros produtos a atitude jovial e descomprometida que a nova onda sintetiza e propaga.
O iê-iê-iê é o grito do momento. É uma brasa. Suas melodias
ecoam na parada de sucessos, nas festas, nas casas noturnas, em programas de
televisão. Do 22º andar do Edifício Martinelli, a Ordem dos Músicos observa com desconforto o fenômeno
desestabilizador do modelo que dava às orquestras os maiores nacos dos
contratos para a animação de bailes. A entidade atribui essa mudança à
crescente popularidade de pequenos conjuntos, formados por instrumentistas apenas
intuitivos. Olhando para partituras, a maioria, de fato, não decifra sequer uma colcheia.
A Ordem, então, declara guerra aos galanteadores de garotas
papo-firme, imprudentes motoristas que descem a Rua Augusta a 120 por hora e
querem que vá tudo pro inferno. A arma utilizada é a exigência do exame para a
liberação da carteira azul, passaporte para o exercício da profissão. Netinho e
Nenê, d’Os Incríveis, não passam na avaliação. Nem Bruno e Dedé, acompanhadores
de Roberto Carlos. Distribuídas às pencas, as reprovações viram notícia de
jornal.
Ilustração: Caco Bressane |
Contorna-se o problema com a distribuição de carteiras com
validade provisória. Afinal, a Jovem Guarda, como passa a ser denominada a
turma que utiliza poucos acordes para contar histórias de amor, é uma
importante frente de trabalho. E, apesar da birra da Ordem, o trânsito entre gêneros
não incomoda boa parcela dos profissionais, detentores ou não de conhecimentos
teóricos. Roberto Caldeira dos Santos, por exemplo, é do time dos intuitivos. Começou
com The Vampires e The Jet Blacks, pioneiros do rock e do twist em São Paulo.
Depois, abraçado ao contrabaixo acústico, incursionou pela bossa nova e o jazz
com o pianista Mario Edson, na Galeria Metrópole. De volta à origem, hoje rebatizado
Bobby de Carlo, assenta o tijolinho que faltava na construção do estilo campeão
de vendagens.
Bobby é amigo de um saxofonista que, igualmente, passeia por
diferentes searas. É Nestico, autor do solo rouco em Rua Augusta. Também ex-integrante dos Jet Blacks, certa vez ele ouviu,
na Praça Roosevelt, uma frase marcante: “Quem nasceu pra tocar tem que tocar”,
disse-lhe Zé Bicão, cantor, pianista, baixista e arranjador.
O saxofonista segue o preceito, seja como arrojado improvisador
jazzístico, seja como participante do RC-7. Ao seu lado, no primeiro naipe de
sopros de Roberto Carlos, estão o trombonista Raul de Souza e o trompetista
Maguinho. Com a carteira azul da Ordem no bolso, eles produzem a metaleira que
brilha em Quando e outros hits do proclamado rei da juventude.
Maguinho já atuou em orquestras e em boates do Centro. Na
Chicote, tocou com o pianista Wanderley Medeiros, que, em seguida, se
transferiu para o Cave. Mais tarde, Wanderley gravou bossas no LP de estreia do
Milton Banana Trio, e atualmente é o organista do grupo de Roberto.
Ilustração: Caco Bressane |
Antes de se incorporar aos Wandecos, Nilton, baixista, também
oriundo das boates do Centro, havia fundado The Cats, de curta trajetória. Aos
14 anos, nas domingueiras do Clube Pinheiros, Lanny Gordin, um dos componentes do
grupo, demonstrava assombroso talento. Lanny está crescido, e dá canjas no restaurante
Stardust. Faz solos libertários na guitarra. Recentemente, o instrumento foi
declarado inimigo da brasilidade. Tido como símbolo da dominação ianque, motivou
a realização de uma passeata que saiu do Largo São Francisco e foi dar em nada.
É difícil condenar ao limbo seis cordas de aço que tantos
serviços vêm prestando à música em geral. Elas estiveram no LP Samba Irresistível, de Casé e Seu
Conjunto, e no playback de A Praia, feito por The Jordans no
estúdio da Gravodisc para Agnaldo Rayol deitar o
vozeirão. Na Augusta, as guitarras estão com Os Impossíveis, na boate Saloom.
Ali perto, na Consolação, com Renato e Seus Blue Caps, na TV Record. Na
Excelsior, com Os Brasas, Mutantes, Os Cardeais, e, na Tupi, com Os Brasões no
caldeirão chamado Divino Maravilhoso.
Os Brasões, às vezes, convocam o trompetista Branco como
reforço. Ele veste a camisa estampada, a calça saint tropez e as botas que
lhe entregam, grava o programa e depois, no restaurante e casa de shows O Beco,
na Rua Bela Cintra, troca o figurino tropicalista por terno e gravata. Música é
ofício.
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Da série Música no Ar: Um passeio pelo Centro na década de 1960, de Fernando Lichti Barros, publicada pelo Sesc 24 de Maio.
https://open.spotify.com/playlist/11TgW9eZDRkITcxdLbKqM6
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