sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Mujica de muitos carnavais


Por FERNANDO LICHTI BARROS
     
À frente de um quarteto, o trompetista Mujica destrincha por duas horas um repertório de marchas, frevos e sambas, seguido na calçada da Avenida Brigadeiro Luís Antônio por alunos de uma escola infantil.

Concluído o trabalho, embarca no metrô rumo a Itaquera, e de lá segue para casa, em São Miguel Paulista. No Carnaval, vai garantir a trilha sonora do Bloco Bastardo em desfile pelo bairro de Pinheiros. 

 Nascido na Bahia em 1942, começou na infância a tocar em bailes. Profissionalizou-se, saiu por aí e parou em São Paulo.Tempos difíceis. 

No começo da década de 70, policiais o cercaram na Praça da República, de onde pretendia chegar ao local de trabalho – a boate Michel, na Boca do Luxo.

Para se identificar, apresentou a carteira da Ordem dos Músicos. Não foi uma boa ideia. Ao ser jogado num camburão, soube que, para evitar constrangimentos como aquele, de tão grosso calibre, era preciso ter um outro documento, expedido pelo Departamento de Censura, na Polícia Federal. Coisas da ditadura.

O trompetista tratou de cumprir a exigência. Apresentou-se com a papelada: Dermival Souza de Oliveira, nascido na Chapada Diamantina, município de Jacobina etc e tal. Faltava o nome artístico.

-  É Mujica - ele disse, lembrando-se da sugestão dada pelo cantor Eduardo Araújo de adotar um apelido que, mesmo vagamente, o associasse a Mogi das Cruzes, onde então morava. 

Nas orquestras de Sylvio Mazzucca e Clovis Ely, no grupo Os Brazões, no Avenida Danças, no Cartola, no Clube Homs, em todos os lugares Dermival passou a ser Mujica.

Mujica, o trompetista que, após a Quarta-Feira de Cinzas, desfeitos sonhos e fantasias do Carnaval, será tudo o que lhe soar como dever de ofício. 

Dê-lhe um sombrero e ele será mariachi.

Mujica, à esquerda

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Mario Edson e os mistérios da noite


Por FERNANDO LICHTI BARROS

Seis vezes por semana, vestindo um terno impecável, Mario Edson senta-se ao piano. O bar é o Baretto, em São Paulo, 2017.

A disposição com que Mario dedilha o Steinway levou, uma vez, Chico Buarque, a perguntar “De onde você tira essa energia?” 

 - Do sereno - respondeu o pianista, já então bem passado dos 70.

Cinquenta e  cinco anos de profissão lhe deram, além de vigor, fina sensibilidade. Ele é capaz de fazer a noitada evoluir de acordo com o clima, o humor, o estado de espírito da plateia.

São 23h30. Mário, dono de um repertório quilométrico, toca Dindi. Daí para Summertime é um pulo. Aplausos entre conversas animadas, e a temperatura sobe ainda mais. Por alguns compassos, Mario deixa o piano para tocar tamborim e apito em sambas de andamento acelerado. Já tem gente agitando o corpo em coreografia moldada ao ambiente projetado para acomodar 60 pessoas.

De repente, mudam os grupos ocupantes de quatro ou cinco mesas. Outra vez a música se acalma – pode ser, Tu mi delírio, bolero matador do cubano Cesar Portillo de la Luz interpretado por Anna Setton, uma das vozes do Baretto. 

Outros músicos experientes revezam-se noite adentro - o baterista Mutinho, autor de canções compostas com Toquinho e Vinícius de Moraes; o pianista Moacyr Zwarg, representante de uma família de grandes músicos; o saxofonista Faninho, antigo parceiro de Mario Edson, e Wilson Gomes, o contrabaixista que se vestia de Drácula para acompanhar Elis em Falso BrilhanteNada fracos, os rapazes. Já foram ouvidos pelo pessoal do U-2, por John Pizzarelli e Mick Jagger. 

Há quatro ou cinco anos, Sharon Stone não resistiu ao balanço da bossa: levantou-se da poltrona e foi fazer selfie com Mario Edson.

São 2h30. Quando tudo indica que a última conta será fechada, chega ao Baretto um grupo entusiasmado. É prontamente atendido ao manifestar o desejo de ouvir Piazzolla. Piano, sax, baixo e bateria saem com Balada para um loco. Aplausos. Começa outra rodada de jazz, bossa-nova, bolero, I love Paris, Garota de Ipanema, Contigo en la distancia.

Mario Edson chama de “dosagem” a mistura de gêneros administrada em função do comportamento do público. Do alto da experiência iniciada em 1962, quando foi contratado pelo Can-Can, um inferninho da avenida Nove de Julho, ele segreda: “Tudo cabe na noite”.

Parece simples, mas é bom lembrar: “Ela tem os seus mistérios”.