terça-feira, 30 de maio de 2017

Nestico nasceu para tocar

FOTO: EDISON KIYOSHI
 

Por FERNANDO LICHTI BARROS

Um saxofone de plástico. Não era exatamente esse o presente de Natal que Ernesto Pinto de Aguiar Neto, o Nestico, esperava ganhar do pai. O garoto andava de olhos e ouvidos voltados ao trompete, à época em que Harry James despontava como astro do instrumento.

Paciência. Sem professor, ele, que já vinha experimentando uns acordes no piano, passou a soprar o sax, inicialmente sem grande entusiasmo – até o dia em que se enfeitiçou ao ouvir pela tevê o grave do tenor do grupo Bill Halley e Seus Cometas.

Em 1962, aos 18 anos, estreou profissionalmente com The Jet Blacks na Lancaster, na rua Augusta; depois, outras boates viriam. No ano seguinte gravou “Twist”, o primeiro LP do grupo. O melhor dos mundos: tocar, receber cachês, passear de táxi, namorar, assinar o improviso rouco na gravação de “Rua Augusta” feita por Ronnie Cord e ter grana para frequentar boates na condição de cliente.

Numa delas, a Cave, ouviu o Sambossa 5, com Maguinho ao trompete. Em 67, depois de muitos bailes feitos com os conjuntos Arpège e Três América, Nestico estava ao lado do mesmo Maguinho e do trombonista Raul de Souza compondo os sopros do RC-7 de Roberto Carlos em shows, gravações e no filme “Roberto Carlos em Ritmo de Aventura”, dirigido por Roberto Farias. Na trilha, um tema de Nestico, o blues “Coisa”.

Pouco antes de ser contratado por Roberto, Nestico conversava com o arranjador, instrumentista e cantor Zé Bicão em frente ao bar Baiuquinha, na Praça Roosevelt. Num dado momento, Bicão saiu-se com essa:

- Quem nasceu pra tocar tem que tocar.

Nestico guardou a frase num canto da memória. Dono de extraordinário talento, tornou-se referência entre os músicos, um jazzista prodigioso.

Na década de 80 fez com o Syncro Jazz um LP e uma apresentação histórica no Teatro Municipal de São Paulo. O grupo, do qual originalmente faziam parte o também saxofonista Vidal Sbrigh e o trompetista Dorimar, vinha então atuando como quarteto, formado por Nestico, Pete Wooley (contrabaixo), Ronny Machado (bateria) e Lilu (piano). 

Lilu era irmã e anjo da guarda de Nestico. Internado no Hospital do Servidor Municipal para tratar uma pneumonia, ele se despediu numa noite fria de junho.

Grande músico, grande cara, o Nestico.

https://www.youtube.com/watch?v=6BbFhy7dzJY



"Quando" - Roberto Carlos em Ritmo de Aventura - YouTube

https://www.youtube.com/watch?v=6udKuPfczWM



quarta-feira, 24 de maio de 2017

Luiz Loy e as 88 teclas


Por FERNANDO LICHTI BARROS



O acordeonista Luiz Machado Pereira ficava atento. Se já nos primeiros gorjeios alguns cantores viajassem para longe, muito longe, a ele e aos demais integrantes do regional da Rádio Cultura restava sair em perseguição ao tom voador. Luiz, iniciando-se na profissão em 1956, aproveitava a oportunidade para exercitar o ouvido harmônico.

Depois de migrar para a Rádio Bandeirantes, ele aportou na Tupi com o Regional do Siles. Foi o contrabaixista Newton Siqueira quem lhe sugeriu adotar Loy como sobrenome artístico.    

Em 59, contratado pela boate Cave, Luiz Loy esperava o patrão ir embora para transgredir uma norma da casa - a que proibia as canjas. Um cantor que começava a habitar as paradas de sucesso e andava aparecendo por lá era então convidado a subir ao palco. A farra se estendia até as quatro da manhã. João Gilberto era o nome do rapaz.

No ano seguinte, cobrindo ao acordeom as folgas do pianista Robledo na boate Chicote, Loy se viu diante de uma enrascada: assumir o piano enquanto o titular estivesse em excursão pela Europa.

Algo inseguro, ele olhou para aquelas 88 teclas e respirou fundo. Usou toda a mão direita para montar os primeiros acordes, enquanto com a esquerda arriscou um dedo, depois dois, três. Naquele instante nasceu o pianista intuitivo, nunca preso à exibição de grandes solos, sempre dedicado à criação de harmonias e arranjos para sobretudo valorizar o conjunto.

Para fazer parte do grupo da Chicote, por indicação de Hélcio Milito, do Tamba Trio, trouxe do Rio um rapaz de 17 anos. Chamava-se J. T. Meirelles, o saxofonista que na década seguinte produziria um tremor ao gravar, à frente dos Copa 5, o LP “Samba Esquema Novo”, de Jorge Ben.

Loy trabalhava no Captain´s Bar em 65 com Bandeira, contrabaixista, e Zinho, baterista. A TV Record levou o trio para gravar o programa Bossaudade, comandado por Elizeth Cardoso e Ciro Monteiro. Por sua conta e risco, Loy apareceu na emissora com mais dois músicos, o trompetista Papudinho e o saxofonista Mazola.

Os cinco fizeram um sucesso tão grande que imediatamente foram convocados a tocar n´O Fino da Bossa, com Elis Regina e Jair Rodrigues, e nos dias seguintes em outros programas da Record – Show em Simonal, Jovem Guarda, Astros do Disco e Chico Anysio Show.
O quinteto chegou a gravar 33 programas num único mês. Mas foi com Elis e Jair que, passeando entre o sambalanço e o samba-jazz, chegou à sintonia perfeita, revelada, por exemplo, nas gravações feitas ao vivo de “Tristeza e “Vem Balançar”.

Nessa mesma fase, o produtor Julio Nagib pediu ao quinteto um desconto no preço então cobrado em estúdio para acompanhar um compositor carioca radicado em São Paulo. Tímido, inseguro ao violão que entregou ao amigo Toquinho, Chico Buarque de Hollanda fez com os músicos seu disco de estreia, um compacto simples contendo “Olê, Olá” e “Meu refrão”.

A parceria foi novamente celebrada dois anos depois. Na contracapa do LP “Luiz Loy Quinteto Interpreta Chico Buarque de Hollanda”, o compositor lembra o fato de a educação musical no Brasil não passar de “vaga hipótese”, o que torna o LP  “comercialmente uma experiência bastante ousada”.


- No teatro, na televisão, por aí, desde a formação deste quinteto temos sambado juntos. Sua musicalidade me espanta – continua Chico. E conclui: “A Zinho, Bandeira, Mazzola, Papudinho e Loy só me resta agradecer de todo o meu violão.”

CHICO BUARQUE MEU REFRÃO - YouTube

https://www.youtube.com/watch?v=8y642sS_ctY





Balançar - Elis Regina e Quinteto de Luiz Loy - YouTube

https://www.youtube.com/watch?v=9ExuycknSaU

Tristeza - Dois na Bossa 2 - YouTube


https://www.youtube.com/watch?v=HbGiE3AfHM4

sexta-feira, 19 de maio de 2017

Bil é um fenômeno




Por FERNANDO LICHTI BARROS

Sem festejos, o trombonista Bil completou 92 anos. Ele não para. Dia desses apresentou-se com a Big Band Senior na Virada Cultural.

Severino Gomes da Silva era Biu na cidade onde nasceu - Macaparana, Pernambuco. Tornou-se Bil na década de 50, em São Paulo, tantas vezes após o maestro Osmar Milani assim chamá-lo, com o L bem pronunciado.

Antes de ingressar na orquestra de Milani e liderar, a partir dos anos 60, o naipe de trombones mais requisitado pelos estúdios de São Paulo, Bil foi aprendiz de sapateiro, lavou cavalos, tocou em coreto, em procissão, em cabaré, em circo, rádio e salões de baile, em diferentes lugares do Nordeste.

Agora, lá vai ele caminhando mansamente pelas ruas do Bixiga. É o mesmo Bil que na década de 1940 foi até o porto de Cabedelo, na Paraíba, para se despedir do amigo Moacir Santos, que embarcaria no vapor Rodrigues Alves Paraíba rumo ao Rio de Janeiro. É o camarada que tempos depois deu dicas de teoria a um colega chamado Hermeto Pascoal.

É o mesmo trombonista que tocou na gravação de “Vou Gargalhar”, com Jackson do Pandeiro na Rádio Jornal do Comércio, em 1954, e treze anos depois na de “Tropicália”, com Caetano Veloso.

Bil mantém a rotina frugal dos homens sábios. Mês passado, no dia do aniversário, cortou o cabelo e em seguida, na feira da Rua Santo Amaro, em São Paulo, comprou banana, abacaxi, mamão e laranja lima. Em casa, almoçou frango com polenta comprado perto do Teatro Oficina.

À tarde foi de ônibus às proximidades da Praça da Árvore. Entrou num bar, tomou café e seguiu até a casa de repouso onde hoje vive a mulher amada, Luzanira, acometida pela doença de Alzheimer.

Em 92 anos, Bil não acumulou nada. Não tem fotos nem gravações, das centenas que fez com artistas de renome. Sente-se feliz assim.

Bil é um fenômeno.

Jackson do Pandeiro - 02 Vou Gargalhar (Samba) 78 RPM - YouTube

https://www.youtube.com/watch?v=IsGas34Frrs