domingo, 10 de outubro de 2021

Um estranho no palco

Por FERNANDO LICHTI BARROS

10 de outubro de 1966,Teatro Record, São Paulo.

“A Banda” e “Disparada” vão dividir o primeiro lugar da segunda edição do Festival de Música Popular Brasileira. 

Está no palco, além de músicos, cantores e compositores, um homem nada afeiçoado ao mundo da canção.

Ele será figura de destaque na galeria dos mais soturnos personagens do período ditatorial iniciado em 1964.    

A partir dos 20min47s do vídeo de 36 minutos, o tal personagem estranho ao meio - um policial que faz "bico na emissora" - ajuda a recepcionar a mãe de Jair Rodrigues, Conceição, e a de Chico Buarque, Maria Amélia.

Ele é Sérgio Paranhos Fleury.

Assista aqui:

https://youtu.be/b04XRukMkTU


quinta-feira, 10 de junho de 2021

Aguilar, em busca do Sol



POR FERNANDO LICHTI BARROS

Um tango, um choro, um fox.

Soa no bairro um trompete na tarde incerta. A sonoridade é corajosa, é franca.

O músico veste o uniforme com que se apresentava no Circo Spacial. 

Paulo Lima de Aguilar, gaúcho de Pelotas, tem 67 anos. Na Escola Municipal de Música de São Paulo mergulhou no método, na disciplina do erudito, e, com os colegas do Ponto na Praça da Sé, aprendeu a malandragem, a bossa de fazer baile sem ensaio.

Tocou nas orquestras de Ely e de Kojak. Conheceu bambas do sopro – Lelé, Buda, Batatão, Mazinho. Descobriu os segredos de um segundo instrumento, o sax; animou noites no Club Homs e no Cartola; com o circo foi à Arábia Saudita, rodou o Brasil.

De algum tempo para cá, é verdade, a agenda não andava grande coisa. Devia ser uma daquelas nuvens que vez por outra surgem acima de quem exerce a profissão, pensou o Aguilar. “Você olha pro céu e vê tudo cinzento. No outro dia muda, o Sol aparece, clareia”. 

Vem a pandemia. Tudo cinza. Aguilar, então, faz da calçada o palco. 

Tarde dessas o trompetista tocava nos Jardins. Um homem pediu Garota de Ipanema. Gostou do que ouviu e estendeu uma nota de cem.

Quando é assim ele volta satisfeito para casa, em Parada de Taipas.

No dia seguinte, pega o ônibus e sai de novo em busca do Sol.

 

Leia sobre Paulo Aguilar em www.aoredordosom.com

 

 


domingo, 11 de abril de 2021

A música abraça Luiz Mello

    Por FERNANDO LICHTI BARROS

Aquele par de óculos estilhaçou-lhe o projeto de atravessar nuvens pilotando um caça da Força Aérea Brasileira. Em pensamento, voava o rapaz entre quimeras, piruetas e rasantes que, ao final, o deixaram frente a frente com a cruel realidade: foi rejeitado pela corporação. Culpa da miopia.

Era preciso arranjar outro meio de ganhar a vida. Trocou então São Paulo por Marília para fazer o que aprendera três ou quatro anos antes: tocar sanfona. Com a bateria de Pirituba, a guitarra de Romildo, com toda a orquestra do Tênis Clube, varou noites, sambas e boleros a embalar casais.

"Você toca bem”, dizia-lhe o guitarrista, entre garfadas da lasanha rotineiramente servida aos músicos. 

Aos 15 para 16 anos já se revelava no então acordeonista o critério, a afeição ao detalhe, a capacidade de trazer aos acordes o viço das notas bem cultivadas. 

O aprendizado com os mais experientes – o guitarrista, Aires, o  saxofonista Casé, companheiros na orquestra de Mantovani, em Assis -, um agudo senso de observação, tudo foi contribuindo para despertar em Luiz Mello a importância do capricho, da dedicação, e em seguida do respeito pelo piano, instrumento que conheceria durante uma temporada na boate Bauxita, em Poços de Caldas. 

Uma estacionada em São Paulo, trabalho no Avenida Danças, no Teteia, e o agora pianista, em 1959, está no Rio de Janeiro. 

Acompanha Dolores Duran no Little Club, onde Oscar Castro Neves aparece para dar canja; transfere-se para a Drink, para o bar do Hotel Plaza, para La Bohèhme e Au Bon Gourmet; estuda contraponto com Moacir Santos e, diante de Kim Novak e Zsa Zsa Gabor, sorve goles de champanhe enquanto ensaia com o Brazilian Jazz Sextet na casa de Jorginho Guinle. 

Quando recebe convite para atuar boate Michel, em São Paulo, deixa para trás os encantos da Guanabara. 

A noite ferve, e nela pulsa o piano de Luiz Mello, na Praça Roosevelt e arredores, no Cave, na Baiúca, em belas harmonias feitas na medida para a voz macia de Dick Farney ou o para arrojo do Sambossa 5. Completando, vem um nada desprezível salário oferecido pelo Djalma´s. 

A noite ferve, sim, mas também cansa - principalmente quando o novo repertório exigido pela boate passa a causar um certo desconforto ao pianista.

Antes, no Rio, ele chegou a experimentar alguma coisa parecida. No bar do hotel Plaza, por algum tempo atuou com ucantor iniciante, que repetia à exaustão as duas canções do seu primeiro disco, de 78 rotações. O rapaz, Roberto Carlos, era gente boa. Tornaram-se amigos, e Luiz deu a João e Maria e Fora do Tom o mesmo tratamento cuidadoso empregado em criações de Bonfá, Jobim, Durval Ferreira, Cole Porter, Benny Goodman e Geraldo Pereira.

Acontece que, no Djalma´s, compositores desse porte começaram a perder terreno. A nova  direção tomada pela casa conduziu o pianista à porta de saída.  Admirador do estilo sugestivo de Walter Wanderley, profissional rigoroso que repreendeu Elis Regina por chegar 13 minutos atrasada ao ensaio para aquele que seria o primeiro show da cantora em São Paulo, Luiz Mello resolveu radicalizar  Se era para se tornar um burocrata, melhor mudar de atividade. Deixou o Djalma´s e foi trabalhar como corretor de imóveis e vendedor de plásticos. 

Não suportou, claro. De novo, e para sempre, retornou à música, uma nuvem que abraça e voa, voa.

  

Video result for Luiz Mello piano
1:13:03
Luiz Mello Trio - Ridin' High [2019] (Álbum Completo)
YouTube · Gravadora Galeão

 

 


terça-feira, 30 de março de 2021

Uma noite em 64



 Norma: show com o Zimbo cancelado na Oásis

Por FERNANDO LICHTI BARROS

Enquanto o país é arremessado em direção a um túnel de horrores, poucos músicos comparecem aos seus locais de trabalho na noite chuvosa de 31 de março de 1964. 

Uma diminuta resistência boêmia bate ponto nas boates e inferninhos de São Paulo. 

Frustra-se quem vai à Oásis, na Rua Sete de Abril: está cancelado o show de Norma Benguell. Duas semanas atrás, abrindo a temporada, ela surgiu, lindíssima, dentro de um vestido assinado por Dener. Fatal, cantou Samba de uma nota só em italiano, com o anteparo do recém-criado Zimbo Trio. 

Fosse numa outra terça-feira, a música desceria no Djalma´s pelas mãos de Rosinha de Valença e Walter Wanderley, e no Juão Sebastião Bar pela voz bossa nova de Telma, No La Vie em Rose, repousaria em serenata com Nilo Chagas, ex-integrante do Trio de Ouro.

Hoje, porém, nem os melhores acordes, nem as mais inspiradas melodias, nada teria garantido o movimento noturno. Em busca de informações, "todo mundo" preferiu ficar em casa, "de ouvido colado no rádio", segundo a nota que a Folha de S. Paulo publica dois dias depois.

 Não faz mal: para o Dia de Tiradentes, no mês que vem, anuncia-se o show de um quarteto na rua Major Sertório, 676. Papudinho, Cido Bianchi, Azeitona e Zinho tocarão trompete, piano, baixo e bateria na abertura do Ela Cravo e Canela. 

Há música no ar. 

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arlos Piper E Papudinho - Um Piston Bossa Nova - 

Video for Papudinho Piston Bossa Nova

quarta-feira, 17 de março de 2021

O poeta, o pianista e o guardador de carros

                                    

Romeu, agora septuagenário, entre Vinicius e Johnny

Por FERNANDO LICHTI BARROS

O porteiro Gunga Din estava de bom humor. Deixou o guardador de carros  atravessar os nove ou dez metros de corredor para espiar o que se passava lá dentro.

O menino tinha 15 anos; chamava-se Romeu Venancio. Ele se encostou à parede e finalmente viu o interior da boate Cave, na Rua da Consolação.

Casa cheia, esfumaçada, um templo frequentado por boêmios, artistas da bossa nova, do iê-iê-iê, gente da televisão, gente endinheirada ou nem tanto, tiras, jornalistas e um representante do Exército da Salvação, entre outras criaturas da noite.

Com o copo na mão, Vinicius de Moraes sai de uma das mesas, caminha até o pianista – era uma canja de Johnny Alf – e em voz baixa canta “Formosa”. Johnny ouve e logo estende um acolchoado de belos acordes para o samba, ainda inédito em disco naquele ano de 1965.

Romeu deixou a boate, esperou pelos trocados dos donos dos carros, e já amanhecia quando foi para a estação do Brás. Daquela vez ele não passaria o dia perambulando pelo Centro, não cochilaria por algumas horas sob o palco da Bon Soir, na Praça Roosevelt, nem tentaria uma vaga de figurante na TV Excelsior.

Queria reter na memória a cena, a música, o silêncio incomum feito pela plateia durante o presente oferecido por Vinicius e Johnny.

Tomou o trem de volta para casa, um barracão em Guaianases. Da janela avistou os campos de futebol da Zona Leste, e não lhe saia da cabeça aquela canção, a doce lembrança de que carinho não é ruim.


Vinicius de Moraes, Dorival Caymmi, Quarteto em Cy, e Conjunto Oscar Castro Never -

 


sábado, 6 de fevereiro de 2021

Os caminhos de Branco


Por FERNANDO LICHTI BARROS

Caminhos a percorrer para se tornar um respeitável músico brasileiro:

Na infância, em Pederneiras, interior de São Paulo, assuma o cavaquinho num grupo de choro ao lado do pai e do avô.

Aos 17 anos, passe a tocar trompete com a Night and Day, aquela mesma orquestra que três anos antes você viu ensaiando e o levou a uma quase epifania.

Algum tempo depois, vá morar em Jaú. Dedique-se à marcenaria e à Orquestra Capelozza.

Em seguida, transfira-se para Araçatuba e vá tocar com Os Guanabara.

Troque de cidade mais uma vez. Em São José do Rio Preto, junte-se ao Conjunto Icaraí. Para fazer bailes, viaje numa Kombi com mais oito pessoas, malas, instrumentos e amplificadores.

Apresente-se em lugares distantes – Goiás, Mato Grosso, Paraná, Minas, Rio de Janeiro. Se a Kombi quebrar na ida, mantenha a calma. Após chegar ao clube contratante, vista o paletó vermelho com lapela preta, e até 4 da manhã toque bolero, mambo, samba, chá-chá-chá, bolero e rock.

No caminho de volta, relaxe se o carro ziguezaguear: é legítimo um cochilo do motorista, que atravessou a noite soprando o trombone.

Ainda em Rio Preto, toque no Circo Garcia e depois com o conjunto de Renato Perez. Prepare-se para novas emoções.

Durante um baile em Nhandeara, não se preocupe com o baixista Jacy. Generosas doses de whisky irão empurrá-lo escada abaixo, mas, fleumático na medida do possível, ele retornará ao palco para garantir os graves. Em Dourados, perceba uma bala passar rente ao bumbo da bateria quando o conjunto se atrever a tocar jazz. Recorra a uma polca paraguaia para acalmar a indignação da plateia.

Vá morar em São Paulo. Anime bailes com os Birutas Boys. Num deles, em Aparecida do Taboado, ouça um tiro disparado na pista de dança. Não se mexa. Deixe a música soar enquanto o cadáver é retirado do salão.

Encante-se pelos trios de samba-jazz e pelo som produzido por músicos do porte de Casé, Bolão, Botina, Dinho, pelas orquestras de Carlos Piper e Dick Farney.

Jamais abandone a admiração por Jackson do Pandeiro. 

Trabalhe em boates como Black & White, La Vie en Rose e Chez Paul. Na jazzística Ichiban, aproveite os intervalos para ouvir o Trio Nordestino, atração de uma casa vizinha. 

Com Os Brasões, faça escala na Padaria Real antes de se dirigir à TV Tupi e vestir camisa estampada, calça saint tropez e botas para atuar no programa Divino, Maravilhoso, com Gilberto Gil e Caetano Veloso

Escreva as partes de metais que darão suporte a São, São Paulo, a ser defendida por Tom Zé no 4º Festival de Música Popular Brasileira.

Faça bailes com Oliveira & Seus Black Boys, integre-se a Os Impossíveis e a outros grupos para acompanhar Ronnie Von e o Trio Ternura.  

Vá trabalhar na boate O Beco e lá permaneça por oito anos.

De novo na Tupi, faça arranjos para a orquestra de Luiz Arruda Paes, e na TV Record para uma apresentação dos Novos Baianos na TV Record.

Estude trompete na Escola Municipal de Música e contraponto com Hans-Joachim Koellreutter, mas não deixe de ser grato a Aparecido Mateus, o músico de Pederneiras que lhe ensinou os primeiros passos.

Mais uma vez na TV Tupi, desponte ao lado de Silvio Brito e Fábio Jr. no programa Hallelluya.

Ensine o que sabe aos jovens músicos.

Nunca se esqueça de cantarolar as cantigas africanas que aprendeu com vovó Josefa.

Organize a Banda Savana, escreva arranjos brasileiríssimos, geniais.

Seu nome completo será José Roberto.

O apelido, Branco.

Maestro Branco.

Vídeo para banda savana Branco



Vídeo para banda savana Branco

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