terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Carlos Alberto, 82


Por FERNANDO LICHTI BARROS

 Não combine nada com Carlos Alberto Alcântara para o período da manhã. 

Desde que, há mais de seis décadas, passou a atravessar noites soprando o saxofone em bailes, depois em boates e gravações, ele não acorda cedo nem se for dia do seu aniversário.

Hoje Carlos Alberto vai sair da cama ali pelas 11. Na cozinha da casa localizada numa rua silenciosa da Parada Inglesa, bairro da zona norte de São Paulo, tomará o café preparado por dona Eleuza. Em seguida, jogará uma partida de damas no tablet e, antes de almoçar, começará a tocar no seu quarto de estudos, entre imagens de Nossa Senhora, Santa Cecília e dos pais, Carlos e Inhá.

Repetirá o ritual à tarde, até a chegada dos filhos e netos. Então, com arroz, picanha, salada de tomate e cerveja uruguaia, virá a comemoração do seu 82º aniversário.

Mineiro de Uberlândia, integrante de uma família que tem música no sangue, a partir da década de 50 ele transitou por praias diversas - as orquestras de Carlos Piper, Luiz Arruda Paes, Sylvio Mazzucca, o iê-iê-iê de Os Wandecos, o samba-jazz dos Cincopados, o “Domingo no Parque” tropicalista e a ousadia perpetrada no LP do Brazilian Octopus e em shows de Hermeto Pascoal.

Mas não pense que Carlos Alberto parou por aí. Em grande forma, faz parte da Jazz Sinfônica, criada em 1989 e agora ameaçada de extinção pelo governo de São Paulo. 

Se de fato tal atrocidade for cometida, o oitentão seguirá em frente, surpreendendo com solos da mais alta elegância na big band de Nelson Ayres e viajando pelo país com a orquestra de Arte Viva, de Amilson Godoy.

Carlos Alberto não é fraco, governador.

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Apresentação de Carlos Alberto de Alcântara em "Noite, Som e Tal", série de shows idealizada e produzida pelo autor do blog para o Sesc Araraquara, em 1º de novembro de 2013:

Noite, Som e Tal - 1 - YouTube

https://www.youtube.com/watch?v=4iylSM1J7x0
25 de dez de 2013 - Vídeo enviado por Fernando Barros
Carlos Alberto de Alcântara - sax tenor Arismar do Espirito Santo - guitarra Carlos Roberto - piano Celso ...



  

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Edmilson Nery e a alegria de viver

Por FERNANDO LICHTI BARROS 

Nada. Não havia mais estudo, palco, ensaio, concerto, aplauso, prestígio, viagens, salário, casa, convivência - não havia mais nada.

Edmilson Nery, um dos mais aclamados clarinetistas brasileiros, pouco se mexia na cama. Ao seu redor ressoavam o uivo da solidão e a sentença de um laudo médico: “Incapacidade de manter qualquer interação social em caráter definitivo”.

Mas um dia, 13 de março de 2013, Edmilson levantou-se do sofá na casa da mãe, dona Yolanda. Caminhou até o banheiro e, devagar, escovou os dentes. 

Era como se estivesse retornando de uma longa ausência, de um sono profundo, sem sonhos bons ou ruins. Era o fim do mergulho no silêncio que sufocou a beleza por ele produzida enquanto foi primeiro clarinetista da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. 


Por 25 anos Edmilson atuou na Osesp - até se defrontrar com o maestro John Neschling, em 2004. Demitiu-se. Quatro anos antes havia iniciado tratamento de distonia, doença neurológica percebida durante um ensaio, quando percebeu paralisado o indicador da mão esquerda.

Fora da orquestra, passou a se dedicar ao ensino. As primeiras manifestações da depressão prenunciaram um roteiro sombrio. Remédios fortes, dois, três maços de cigarro por dia, rotina em escombros, casamento desfeito, real e imaginário por vezes se misturando e, em 2010, a primeira internação. 

Foram cinco em dois anos. Numa delas, quem estava ali já não era o líder de naipe da Osesp, nem um dos fundadores do formidável quinteto Sujeito a Guincho – era, sim, um paciente em lágrimas cantando Over the rainbow com o coral da clínica. 

Na quinta e última hospitalização, fugiu e foi encontrado caído numa calçada, em São Caetano do Sul. Levado para a casa da mãe, limitou-se a vegetar durante seis meses. De estalo, naquele 13 de março, despertou. 

Aos poucos reduziu a medicação, readquiriu ânimo, confiança, vontade de viver. Com um clarinete oferecido pelo irmão, Edilson, trompetista da Banda Sinfônica, voltou a praticar.

Em seguida, outros presentes: o convite – aceito - para dar aula no ateliê do luthier Daniel Tamborim e, algum tempo depois, o reencontro com amigos no aniversário da saxofonista Claudia Montin Franco.    

Na festa, o também saxofonista Mauricio de Souza convidou Edmilson, ainda em fase de dificuldade financeira, para morar na sua casa, no Riacho Grande. Ele foi.

Lugar bonito, próximo à represa Billings, em São Bernardo, bem distante do ateliê de Tamborim, localizado na região da avenida Paulista, em São Paulo.

Às 5h30, ensardinhado na primeira das duas conduções tomadas rumo ao trabalho, respirava feliz o vento que entrava pela janela. Tinha alegria, apoio de familiares, das filhas Nathália e Luciana, de amigos iguais a Mauricio. A vida estava ali para ser celebrada.

Numa segunda-feira, Edmilson assista a um show do Septeto S/A, liderado por Mauricio, no São Cristóvão, um bar da Vila Madalena. Ali conheceu Joelma; hoje são casados.

Ele continua a dar aulas e novamente faz parte do Sujeito a Guincho. Com o quinteto, andou se apresentando pelo Brasil afora. Para fazer um desses concertos, esteve em  Ilhabela. Estavam lá Joelma, a música, os companheiros. Do Atlântico vinha uma brisa. Era um dia de sol.










sábado, 8 de outubro de 2016

Bauru e o beija-flor

Por FERNANDO LICHTI BARROS

Foto: Régis Filho


De braços dados, caminhamos lentamente por um corredor no Instituto do Coração, em São Paulo.

Sujeito boa-praça, o Bauru, saxofonista que no fim da década de 30 começou a tocar na banda de Potirendaba, a cidade onde nasceu, no interior de São Paulo. 

Conversa agradável, memória precisa, histórias sobre dancings, boates, viagens, gravações com as orquestras de Carlos Piper, Dick Farney, Sylvio Mazzucca. E planos, muitos planos.

Poderia voltar a tocar um mês após receber alta, ele disse. Iríamos, então, “montar um grupo legal, bolar um projeto, conseguir patrocínio”. 

As ideias pareciam brotar de um menino encantado com o mundo, e não de um homem de 87 anos à espera de uma cirurgia.

Alguns passos depois, paramos diante de um janelão de vidro. Rondava o Hospital das Clínicas um helicóptero da Polícia Militar em tensa coreografia. E Bauru:

- Lindo. Parece um beija-flor.

Não é pra ter saudade de um cara assim?


Bauru - Apostolo Secco - YouTube


https://www.youtube.com/watch?v=n_0tGwEBZXY




Carlos Piper - LP O Som Espetacular da Orquestra de Carlos Piper ...

https://www.youtube.com/watch?v=uGnIUi3s9SM

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quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Wilson, o baixista que virou Drácula

Por FERNANDO LICHTI BARROS




A campainha do apartamento estava quebrada. Pelo olho-mágico, Wilson Gomes avistou quem batia à porta - o baterista Nenê e o guitarrista Natan Marques. Os dois pareciam ter pressa.

“Vamos, calce os sapatos”, eles disseram. Não havia tempo para conversa; apenas para uma informação seca: os três iriam ensaiar com Elis Regina.

Wilson apanhou o baixo Snake utilizado na véspera para acompanhar Pery Ribeiro na Catedral do Samba, e da Rua das Palmeiras seguiu com os amigos até a Escola de Dança de São Paulo, na Praça Ramos.

Lá estavam, muito sérios, Elis, Cesar Mariano, o coreógrafo JC Violla e a diretora Miriam Muniz. Feita uma rápida apresentação -“esse aqui é o Wilson” -,  logo teve início o trabalho. Nada de música: ao invés de tocar, todos passaram a fazer alongamentos, sob a orientação de Violla.

O show em preparação levaria o nome de Falso Brilhante, com estreia marcada para o final daquele ano,1975. Quando, enfim, os músicos começaram a tocar canções já gravadas por Elis – e esse foi o teste a que Wilson foi submetido -, ele demonstrou segurança. Conhecia o repertório da cantora. 

Cesar Mariano sorriu, sinal de que o contrabaixista estava admitido.  Então, Miriam Muniz se aproximou e avisou: os músicos seriam também atores,  
     
- Você vai ser o Drácula - ela disse a Wilson.


Não havia nada que vinculasse as atividades noturnas atribuídas ao conde da Transilvânia à trajetória profissional do contrabaixista, iniciada em Fortaleza, sua cidade, em rodas de choro e nos bailes animados pelos conjuntos de Ivanildo e de Roberto Mota.

Mas uma chance como aquela, um presente da vida, não deveria ser desperdiçada. E, de maquiagem e capa preta, surgiu Wilson no palco do Teatro Bandeirantes para fazer parte de um espetáculo comovente, inesquecível.



Gracias A La Vida Elis Regina Composição: Violeta Parra Gracias a la vida, que me ha dado tanto Me dió dos luceros que cuando los abro ...



domingo, 4 de setembro de 2016

Oliveira e os Black Boys: um twist na ditadura

Por FERNANDO LICHTI BARROS


Faltavam cinco dias para o desfile da Semana da Pátria, o primeiro após o golpe de 1964, quando, numa nota de 19 linhas, o  Diário da Noite acusou o quinteto Oliveira e Seus Black Boys de ter tocado o Hino Nacional em ritmo de twist., durante um baile, em Santo André. Um “verdadeiro atentado aos mais comezinhos princípios cívicos”, bradou o jornal.

Foi o começo do enredo.

Dia 10 de setembro, o secretário da Segurança Pública, general Ivanhoé Gonçalves Martins, encaminhou à direção da Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS) um recorte contendo a notícia do Diário da Noite.

A Ordem dos Músicos entrou na dança. Em ofício assinado pelo presidente Wilson Sandoli, intimou a turma de Oliveira a depor em processo “ético profissional”, instaurado para apurar o caso, de antemão considerado pela entidade como “pleno desrespeito à Pátria e às leis em vigor”.

O não comparecimento dos músicos, prosseguia a intimação, levaria a Ordem a recorrer “às autoridades policiais quer civis ou militares”.




A tarefa de fazer a avaliação técnica do episódio coube a dois veteranos profissionais, Antonio Torcheia e Osmar Milani. Depois de ouvir as explicações dos “denunciados” e a execução da “partitura incriminada”, eles saíram em defesa dos colegas. Assinaram, com Sandoli e o consultor jurídico Wilson Santos, parecer de 26 linhas que concluiu: não houve o que noticiara o Diário da Noite.

Tratou-se, segundo eles, de um mal-entendido provocado pelo solista que, “levado pelo entusiasmo”, improvisou durante um compasso. Tudo teria ocorrido “de forma indefinida, capaz de ser alimentada mais pela sugestão que pela realidade”.

Não havia, portanto, “culpabilidade” para enquadrar os músicos “nas penas cominadas no Código de Ética Profissional e da Justiça Militar”. Anexado ao parecer, a OMB encaminhou ao DOPS os nomes e endereços dos músicos de Oliveira com uma foto do conjunto.

     
Tarde demais. Entrou no caso o II Exército. O chefe do Estado Maior, general Durval Campello de Macedo, enviou ofício à Pasta da Segurança, que por sua vez despachou o material para o DOPS.

No documento, o general solicitou “os bons ofícios dessa Secretaria de Estado no sentido de que este QG fosse informado quando à veracidade da ocorrência para as providências decorrentes”.

Um policial foi ouvir o autor do solo. Demercilio Viana, ex-cabo do Exército, bom guitarrista, cheio de balanço, foi ao ponto:

- Não ia macular um patrimônio que eu mesmo ajudei a zelar.

No relatório, o policial concluiu: o conjunto Oliveira e Seus Black Boys apenas citou, no improviso feito por Demercilio, uma música cujos primeiros compassos têm certa semelhança com o Hino Nacional. 

Ficou patenteado o ridículo da patacoada. A música era American Patrol, que na Segunda Guerra a orquestra de Glenn Miller tocava para animar tropas dos Estados Unidos.
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Baseado em trecho do livro "Do calypso ao chá-chá-chá - Músicos em São Paulo na década de 60", de Fernando Lichti Barros, autor deste blog.

Glenn Miller-"American Patrol" · Glenn Miller - Chattanooga Choo Choo - 




https://www.youtube.com/watch?v=aI_PRBusZWg


sexta-feira, 26 de agosto de 2016

O nome dele é Buda


Por FERNANDO LICHTI BARROS

No Mercado da Lapa ninguém sabe quem é o homem alto e corpulento tantas vezes visto por lá comprando azeitonas e tremoços. Aquele mesmo que sempre elogia, com sotaque italianado, o pastel de palmito servido pelo Box 40:

- Orra, isso vale por um almoço.

O nome dele é Dorival Auriani, mas pode chamá-lo de Buda. Trompetista - e, mama mia, que trompetista! Ex-impressor gráfico, ex-lateral direito do Nacional da Barra Funda, ele se tornou músico profissional aos 20 anos, em 1949. Levado pelo irmão, Felpudo, também trompetista, foi integrar a orquestra de Walter Guilherme, na Rádio Cultura. Daí para a frente não parou mais.

Quando a onda era samba-jazz, nos anos 60, lá estava ele com o Sambossa 5, com Os Cincopados e o octeto de Cesar Camargo Mariano.

Seu nome está registrado na contracapa de LPs de Milton Nascimento, Frenéticas e Premeditando o Breque – apenas três exemplos da atividade febril que o levava a fazer quatro, cinco gravações num único dia.

Shows com artistas de renome? Anote alguns: Tony Bennett, Nancy Wilson, Roberto Carlos, Burt Bacharach, Shirley Bassey, Ray Conniff, Johnny Mathis e Four Tops.

Orquestras? Carlos Piper, Dick Farney, Elcio Alvarez, Luiz Arruda Paes, Osmar Milani, Chiquinho de Moraes, Nelson Ayres e, claro, Sylvio Mazzucca. Foram 47 anos de shows, discos e bailes com Mazzucca, uma amizade verdadeira.

Amizade daquelas festejadas, ao término de uma boa apresentação, com macarronada numa cantina do Bixiga. Ou com um presente como o oferecido por Mazzucca a Buda, durante a gravação de um LP da orquestra, em 1985:

- O solo é seu. 

Era uma composição de Mazzucca, Perto de Você. E Buda, uma vez mais, tirou do trompete um som cristalino, bonito, a tradução de um sujeito tão admirável.   

Perto de você - Sylvio Mazzuca- - YouTube

https://www.youtube.com/watch?v=5KZ6RTyhUmE

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