Por FERNANDO LICHTI BARROS
Ilustração: Caco Bressane |
Lá vai Mário Edson, alto, magro, pensativo, caminhando pelo Centro. Da Avenida São Luiz enxerga a Galeria Metrópole, onde tocou nos últimos quatro anos; atravessa a Consolação e, na Martins Fontes, diminui o passo.
Não, definitivamente não é justo estar desempregado
o músico entusiasmado, o professor que levou a um programa de tevê o coral da
escola estadual da Vila Matilde para cantar Viola Enluarada com
Os Cariocas, o iconoclasta que invadiu com um samba-exaltação o ultrabossanovista
Juão Sebastião Bar.
Mário anda até a Rua Avanhandava. Entra no Jogral,
reinaugurado neste ano de 1968, e pergunta se precisam de pianista. Precisam.
No dia seguinte, ele estreia. Com o seu quarteto, passará a esquentar as
noitadas ao lado do Trio Mocotó, Manezinho da Flauta, Adauto Santos, Leo Karam e outros
artistas. Na porta, filas; na plateia abarrotada, estrangeiros atentos ao
suingue local. Aparecem Erroll Garner, The Single
Swingers, Michel Legrand e, sem negar-se a dar canjas bem temperadas, Oscar
Peterson e Sarah Vaughan.
Natural que episódios assim aconteçam no Centro, o
chão de encontros, trocas e fusões. Dizzy Gillespie que o diga. Em 1961, ele
recebe cumprimentos e elogios após a apresentação do mais puro bebop no
Teatro Record, mas quer mesmo é conhecer o teatro popular de Solano Trindade.
Desejo atendido: no auditório da Rádio Eldorado, aonde é levado, ele fotografa
o espetáculo e não resiste à percussão e à coreografia: integra-se ao
maracatu, à batucada, ao frevo do grupo de Embu das Artes.
Ilustração: Caco Bressane |
Divirta-se, Herb. Caso seja acometido por tremores
decorrentes de um sentimento nostálgico, procure o antídoto no Teatro de Arena.
Toda segunda-feira é dedicada ao jazz. Lá, aproveite para observar os colegas
brasileiros. A maioria cursou a escola dos bailes, dos discos, das retretas, do
circo, das ruas, formação que os capacita a enveredar por todos os gêneros com
personalidade e valentia. Observe aquele rapaz, o Carlos Alberto Alcântara: foi
tintureiro, passou do cavaquinho e do banjo para o sax, fez bailes no interior
do Paraná e de São Paulo com orquestras regidas pelo pai, e agora, ainda na
faixa dos trinta anos, escolhe notas com a sensatez de um veterano.
Muitos outros músicos de cancha têm histórico de
luta por aprendizagem e imersão no trabalho. Bauru, baritonista da orquestra de
Dick Farney, tomou as primeiras lições com Dito Dezoito, coveiro e
clarinetista em Potirendaba, no interior do estado. Odésio Jericó,
antes de ser trompetista disputado pelas big bands, tocou em
procissões e festas cívicas com a Philarmônica 21 de Setembro, em Petrolina,
Pernambuco. Jovito abandonou sua especialidade, o bongô, e com a cara e a
coragem tornou-se baterista na boate Lancaster. Mazinho, o menino de 15 anos
que deixa boquiabertos os frequentadores de boliches e inferninhos com solos de
sax alto, profissionalizou-se no Circo Rosário, na região de Ribeirão Preto.
Ilustração: Caco Bressane |
No ano anterior, um deles, o Clube Elite 28 de
Setembro, foi destruído pelo incêndio que matou 53 pessoas durante o Baile de
Santo Antônio. Absorvida a tragédia, as pistas do Chuá, Caçamba, Cuba,
Tropical, Lilás e várias outras continuaram cheias. Pé-de-valsa que se preze
até hoje calça um pisante lustroso para dançar o puladinho no Som de Cristal,
na Rego Freitas. Se do nada o tenorista Adolar tirar um Body and Soul emocionado,
melhor: colam-se corpos e almas, em resposta à maravilha que,
na mesma medida, a noite proporciona na gafieira ou no Teatro Municipal, onde
Elizeth Cardoso, esplendorosa, canta Villa-Lobos, onde em cada arranjo Duke Ellington
reafirma apreço à música, onde o Carnaval eclode com a orquestra de Osmar
Milani.
Bil, o trombonista, por anos atuou em big bands como a de Milani. Lidera um naipe que faz até quatro sessões de gravação num mesmo dia. Pode estar, agora, num estúdio com a Banda Tropicalista de Rogério Duprat, divertindo-se em interpretações caricatas de clássicos do cancioneiro. Ou, com o maestro Portinho, registrando a base da balada em que Nelson Ned, certeiro, lembra que tudo, tudo passará.
Sábio Ned. Se nada é para sempre, dancemos um chá-chá-chá. No palco do Avenida Danças, ali na Ipiranga, quando sobe a cortina vermelha, a orquestra começa a tocar.
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Da série Música no Ar: Um passeio pelo Centro na década de 1960, de Fernando Lichti Barros, publicado pelo Sesc 24 de Maio.
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