quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Juão é todo bossa

 Por FERNANDO LICHTI BARROS

Ilustração: Caco Bressane
A tardinha cai, os mais precavidos telefonam para 37-6876, reservam mesa e, num doce balanço a caminho do bar, aproximam-se da esquina da Rua Major Sertório com a Dona Veridiana. Agora, é só entrar no Juão Sebastião. Aqui, dizem, é mais que uma casa noturna: é um templo, todo santo dia aberto aos devotos da bossa nova.

Na noite de 9 de janeiro de 1963, o sacerdote é Pedrinho Mattar. No piano de cauda, acompanhado por baixo e bateria, ele celebra a cerimônia num palco pequeno, à esquerda de quem entra. Sobe a temperatura, mas isso é apenas o começo. Cheia de graça, Claudete Soares junta-se ao trio. O Juão pega fogo.

Fazer música com liberdade dá nisso. Então, que nas suas asas venham Leny Andrade, Maria Odete e Ana Lúcia; que venham Os Cariocas, Taiguara e Geraldo Vandré; que aportem instrumentistas de safras variadas. Entre os mais maduros está um ex-zagueiro do Nacional Atlético Clube, o trompetista Buda. Além de integrar a orquestra de Sylvio Mazzucca, ele faz parte d´Os Cincopados, adeptos da vertente da bossa que mais tarde será chamada samba-jazz. Mais jovens, e tocando de maneira igualmente desassombrada, Cesar Mariano, Airto Moreira e Humberto Clayber formam o Sambalanço Trio, outra atração da casa.

Quem sempre aparece é um estudante de arquitetura que constrói poesias e as emoldura com canções. Já mostrou algumas aqui no Juão. Ele, Chico Buarque de Hollanda, vai registrar duas a convite da RGE. A gravadora acumula sucessos. Tem no currículo Estão Voltando as Flores, com Helena de Lima; Dindi, com Agostinho dos Santos, e Alguém Me Disse, com Maysa, lançamentos de 1962. Agora, em 65, vai repetir a dose com Chico.

Ilustração: Caco Bressane

À espera do compositor, no estúdio Pauta, está o quinteto de Luiz Loy. O grupo é afiado na arte do acompanhamento: na TV Record, atua ao lado de Elis Regina e Jair Rodrigues n´O Fino da Bossa, e de Elizeth Cardoso e Cyro Monteiro no Bossaudade, revezando-se com o regional de Caçulinha. Também participa de programas especiais e, nos ensaios feitos às pressas, atende com paciência e empenho às reivindicações feitas sem parcimônia por cantores – coisas do tipo introdução ad libtum, solo em três por quatro, ralentando na volta, com final apoteótico. Quem disse que vida de músico é fácil?

Muito bem: Loy e seus companheiros estão prontos para o trabalho. Aceitaram fazê-lo por um preço camarada, metade do que costumam cobrar, mas o resultado será compensador. Chico deixa o violão a cargo de um amigo, Toquinho. A um sinal de Stelio, o técnico de som, começa a ganhar forma o compacto simples – de um lado, Olê, Olá; do outro, Meu Refrão. A parceria rende, no ano seguinte, um LP do quinteto inteiramente dedicado a músicas de Chico, com direito a elogios do compositor na contracapa. Mais um disco da RGE, gravado nesse mesmo lugar, na esquina da Rua Major Quedinho com Santo Antônio.

Assim como as boates e os salões de baile, os estúdios preferem o Centro e as proximidades. Dois exemplos: o Magison, onde Hector Costita fez Impacto, fica na Barão de Itapetininga. O da RCA Victor, onde Os Incríveis vão gravar O Vendedor de Bananas, está na Dona Veridiana, a quatro quarteirões do Juão Sebastião, esse reduto de intelectuais na flor da juventude que, se quiserem, podem dar um pulo no Clubinho.

O Clube dos Artistas e Amigos da Arte – para os íntimos, Clubinho – foi fundado em 1945 e passou por dois endereços antes de fixar-se no subsolo do Instituto dos Arquitetos do Brasil, na Bento Freitas. Promove exposições, noites de autógrafos, bailes, shows; é onde convivem pintores, escritores, compositores. Corre noite adentro que lá Paulo Vanzolini começou a escrever Volta Por Cima, e Caymmi compôs Saudade da Bahia. Verdade ou não, o fato é que o Clubinho reúne, entre os habitués, criadores de telas, melodias e textos formidáveis. É o local indicado para Pablo Neruda conceder entrevista coletiva e falar sobre literatura e política em setembro de 1968. Ano turbulento, esse. Três meses depois é promulgado o Ato Institucional nº 5, que deságua em práticas visceralmente opostas aos abraços, beijinhos e carinhos sem ter fim almejados por Vinicius de Moraes em Chega de Saudade.

Músicos têm que dançar miudinho. Na década seguinte, serão obrigados a comparecer uma vez por ano ao prédio da Polícia Federal, na Rua Xavier de Toledo, para renovar uma carteira expedida pelo Departamento de Censura de Diversões Públicas. Não há, porém, documento que faça subir o prestígio da categoria ante a máquina do Estado. Faz tempo que o Ponto dos Músicos, na São João com Ipiranga, recebe visitas de policiais cujo humor em nada coincide com o reinante, digamos, no Juão, em 25 de maio de 64.

Ilustração: Caco Bressane

Naquela noite, correram para o bar o Zimbo Trio, o conjunto de Walter Wanderley, Rosinha de Valença, Sérgio Mendes, Oscar Castro Neves e Edson Machado. Foram comemorar o êxito d´O Fino da Bossa, um show de três horas que o Centro Acadêmico XI de Agosto organizou no Teatro Paramount e deu origem ao programa de tevê.

O Juão, de novo, acabou em festa.

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Da série Música no Ar: Um passeio pelo Centro na década de 1960, de Fernando Lichti Barros, publicada pelo Sesc 24 de Maio.


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