quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Músicos: dois Pontos

Por FERNANDO LICHTI BARROS

       Ilustração: Caco Bressane

Precisa de um trombonista que bata o olho na partitura e saia tocando com o naipe de sopros? Um guitarrista que dispensa ensaio? Um cantor com repertório para daqui a pouco enfrentar a primeira de quatro noites de Carnaval? Vá ao Ponto dos Músicos, na Praça da Sé. Você pode encontrá-los entre o Marco Zero e a escadaria da Catedral.

Na Sé ficam os “avulsos”, músicos mais afeitos aos serviços eventuais, de última hora. Foi lá, na década de 1950, que o maestro Roberto Ferri contratou um adolescente, Lambari, para tocar em três bailes. O garoto tirava do sax alto um som bonito, bem definido. Não tardou a ir para a orquestra de Sylvio Mazzuca, uma das várias em atividade em São Paulo.

Integrantes de trupes como a de Mazzuca – as de Osmar Milani, Carlos Piper, Simonetti, Elcio Alvarez, Pocho e Erlon Chaves, por exemplo – têm outro local para se encontrar, também chamado Ponto dos Músicos. É a esquina da São João com Ipiranga, defronte a um bar, na diagonal do Brahma.  

Mas não apenas o pessoal dessas big bands converge para lá. Aparecem instrumentistas em geral, os atuantes com regularidade nas boates e estúdios de gravação perto dali e os que buscam colocação ou se habilitam a fazer substituições. No Ponto, trocam informações, tomam um trago, atualizam-se sobre a dinâmica da indústria fonográfica, que agora, no decorrer dos anos 60, anda de olho na música instrumental.

Na esquina não falta assunto. Saiu o LP de Heraldo do Monte. Hector Costita viajou para o Rio para gravar com Sergio Mendes. Ouviu Projeção, de Luiz Chaves? Vale a pena: pela primeira vez no Brasil, o protagonismo é dado a um contrabaixista. Cadê o Renato Perez, sax barítono? Foi morar no interior. O Walter Wanderley ainda está por aqui, esbanjando suingue no órgão Hammond, mas pensando em ir embora pros Estados Unidos. Cyro Pereira e Mario Albanese inventaram uma bossa em cinco tempos, o jequibau.

Ilustração: Caco Bressane

O ruído do trânsito no Centro é um dos sinais do pacto firmado às cegas pela cidade com o crescimento. As conversas intermináveis se desdobram na esquina. Anoitece e, dentro do bar, um rapaz fixa o olhar no copo em repouso sobre o balcão. Ouve muito, responde com reticências. Chama-se Casé. A respeito dele contam-se maravilhas. No seu disco, Samba Irresistível, numa faixa, improvisa ferozmente ao sax; numa outra, como clarinetista, alcança a mansidão dos monges.   

Alguém o observa a distância. Dom Salvador, pianista recém-chegado a São Paulo, não ousa se aproximar. Por enquanto, trabalha num cabaré encravado numa rua paralela à Rio Branco, mas logo estará com Oliveira e Seus Black Boys no Black & White, na Rua Bento Freitas, e numa série de LPs, Travessuras Musicais. Ele é da turma que vem promovendo a mistura de samba com jazz. Muito em breve migrará para o Rio de Janeiro. Vai usar o tempero com o Copa Trio.

Formado em Campinas, no mesmo conservatório onde Salvador estudou, Laercio de Freitas faz escala no Ponto antes de iniciar ao piano a jornada na Baiuca. Uma agenda febril o aguarda nos próximos anos: jingles, trilhas de cinema, bailes, temporada em navio. Não menos intensa é a rotina dos que atuam nas big bands. Chegam a cumprir maratonas de sessenta, oitenta festas de formatura. Ao final, retornam ao cruzamento da São João com a Ipiranga. Como resistir ao carteado e à sinuca no Clube Sereno, ao sanduíche de pernil na padaria Radiação, aos longos diálogos no Ponto?

Mais informes: Edgard Gianullo acompanhou a Nara com um violão ousado num samba do Zé Keti, o Opinião. Bateu em 40 mil cruzeiros o salário de Luiz Mello no Djalma’s. Foi lá que ele e o Sambossa 5 se apresentaram com Silvio Cesar e uma cantora gaúcha, Elis Regina, para meia dúzia de gatos pingados. Sabá, Cido e Toninho, do Jongo Trio, cantando Feitinha pro poeta: o máximo! Veja a estica do Papudinho, trompetista. Ele manda fazer os ternos na alfaiataria do D’Carlos. O Bil, trombone, também. E alguém se lembra dos sapatos azuis que o quinteto do Breno Sauer usava no La Vie en Rose? Sapatos? Tem um pianista que não usa, no bar do Hotel Comodoro, ali na Duque de Caxias.

Ilustração: Caco Bressane
Correção importante: não é um, é uma pianista. Nininha Rocha, mineira de Uberlândia, morena, bonita, usa batom cor da pele, veste-se bem e impõe-se com indiscutível competência no meio profissional dominado por homens. Os jornais já elogiam a “pianista dos pés descalços”, futura atração da TV Excelsior, e noticiam a estreia do Zimbo Trio na Oásis, a badalada boate da Sete de Abril. Rubinho, Amilton e Luiz ao lado de Norma Benguell, lindíssima dentro de um vestido assinado por Denner. O show se repete às terças-feiras, menos na de 31 de março. O ano é 1964. A cidade está quase vazia.

Agitados anos 60. A música imita a vida. Transforma-se. Cai o volume de trabalho das orquestras e aumenta a procura por formações menores, aqueles conjuntos da meninada que se apoia em equipamentos potentes e nos novos interesses do público. No Ponto, fala-se que a culpa é dos Beatles.

O iê-iê-iê está no ar.

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Da série Música no Ar: Um passeio pelo Centro na década de 1960, de Fernando Lichti Barros, publicada pelo Sesc 24 de Maio.

 

 

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