domingo, 24 de setembro de 2017

Victor no camarim



Por FERNANDO LICHTI BARROS


Victor Assis Brasil, Maysa, Celso Machado, Quarteto Moenda e uma orquestra de cordas regida por Júlio Medaglia haviam acabado de se apresentar naquela noite, a primeira quarta-feira de maio de 1976.

Desde 74 no Brasil, depois de ter estudado e trabalhado no exterior, Victor se dizia feliz com o interesse despertado pela sua música. Três dias antes conseguira lotar a Sala Cecília Meirelles, no Rio.

No camarim da Igrejinha, uma boate encravada na esquina das ruas Santo Antônio e Treze de Maio, no Bixiga, ele falava sobre temas até hoje em discussão. “Não há falta de público. Há é falta de informação, falta de música, falta de oportunidade de mostrar. O problema é saber dar de si para o público. Só o que existe são pessoas sensíveis e insensíveis”.

O rótulo de “jazzista”, insistentemente associado a ele, já nem o incomodava. “Toco música”, resumia.

Inundavam o camarim os oceanos não-pacíficos vistos por Manuel Bandeira nos olhos de Maysa. Sua interpretação de Ne me quitte pas havia deixado o público de joelhos. Os solos de Victor, idem.

Em meio ao burburinho que festejava a estreia esplendorosa da temporada, Victor continuava a refletir sobre a importância de ser independente.
“Podem rotular, falar de jazz, elite, o que quiserem. Eu vou fazer o que eu sinto. O mais importante pra mim, além da música, são as pessoas”.

Antes de nos despedirmos, o saxofonista ainda falou sobre seu encantamento com o baião e sobre a determinação de semear: “Só quero jogar alguma coisa no chão, até ver nascer a planta”.

Ele estava com 30 anos, eu com 23. O relato do encontro foi publicado no Diário da Noite.






terça-feira, 15 de agosto de 2017

Gogô capricha na harmonia

                                
 Por FERNANDO LICHTI BARROS

Tem pizza, polenta, polpettone. E tem um piano. Às vezes Hilton Valente, o Gogô, aparece por lá, no Zio Vito, e dá canja. Ele mora, faz tempo, perto do restaurante, no Cambuci.

No Rio, a cidade natal, Gogô começou a tocar. Teve aulas com Radamés Gnatalli. “Já vi que você gosta de harmonia”, disse-lhe o professor. Perfeito. Gogô era um atento ouvinte de discos e de música feita ao vivo, como a de Johnny Alf na boate do hotel Plaza, em Copacabana. 

No mesmo bairro, em 1957, deu-se no Au Bon Gourmet a estreia profissional de Gogô. Três anos depois Johnny, já em São Paulo, arranjou-lhe o primeiro emprego, na Cave, onde também trabalhava outro carioca, o saxofonista J.T. Meirelles. 

Baiúca, Le Club, Farney´s, Copacabana Palace, em outras tantas boates e hoteis de São Paulo e do Rio, Gogô deixou acordes bonitos no ar. 

Em 66 gravou pelo selo Farroupilha o LP “Quarteto Lambari”, com o saxofonista Eduardo Pecci, o Lambari, mais o baterista Hamilton Pitorre e o baixista Capacete. Concluído o disco, os quatro nunca voltaram a se reunir. 
 
















Entre 1972 e 78, Gogó estudou medicina. No penúltimo ano do curso, depois de ter acompanhado Maysa, Nana Caymmi e Doris Monteiro, passou a trabalhar com Dick Farney. Paralelamente, exerceu a clínica geral. Em 82, decretou: “Sarei” – e ficou só com a música.

Numa noite de 1989, empregado com carteira assinada no Hotel Ca´d´Oro, na Rua Augusta, redigiu lá mesmo o pedido de demissão. Aos 50 anos, andava cansado daquilo - o piano ruim, a comida nada apetitosa oferecida aos funcionários, o alheamento do público. Foi para casa e no portão, com o paletó pendurado no ombro, anunciou à mulher, Dina: “Parei”.

Já lecionava na Unesp, e  depois, até se aposentar, ensinou harmonia na Faculdade de Música da Unicamp. Em 2009 lançou o CD “O piano de Gogô”, apenas duas vezes apresentado ao vivo.

Agora, para ouvi-lo de perto, só se ele aparecer de surpresa no Zio Vito. Ou se você passar pela Rua Canudos, no Cambuci. Lá, após acordar, tomar café e ler jornal, Gogô estende as mãos sobre as teclas para tocar jazz, bossa-nova e boleros. Caprichando na harmonia, é claro.

O PIANO DE GOGÔ (Maestro Hilton Jorge Valente) - YouTube

https://www.youtube.com/watch?v=jwJkdVZMUpI





Dick Farney - The things we did last summer - YouTube

https://www.youtube.com/watch?v=8yyDYNZWaO8



    

SONHO DE CARNAVAL - QUARTETO LAMBARI - YouTube

https://www.youtube.com/watch?v=BsZNtJHTQC4







  


terça-feira, 27 de junho de 2017

A arte de ser Theo de Barros


Por FERNANDO LICHTI BARROS

Recebeu o cheque e saiu em silêncio. 

Aquilo era tudo o que a arrecadadora de direitos autorais tinha a dar a ele, o compositor capaz de transformar uma cena observada na feira da Rua Bolivar, em Copacabana, em "Menino das Laranjas", que Elis Regina gravara em 1965. 

Era um cheque de R$ 65 pela obra que incluía, entre outras preciosidades, a música escrita sobre versos de Geraldo Vandré e, trinta anos antes, cantada por Jair Rodrigues no Festival da Record. “Disparada” era o nome da canção.

Ex-violonista do Quarteto Novo, ex-produtor de discos da gravadora Odeon, da Eldorado e da Marcus Pereira, o artista agraciado com aqueles escassos patacos vinha de longa caminhada, percorrida desde que tocava baixo de três cordas na boate Lancaster, na Rua Augusta, lá pelo começo dos anos 60.

Pouco depois ele assinaria a direção musical do Teatro de Arena, e, entre 1972 e 80, criaria cerca de três mil jingles e  trilhas para cinema e publicidade. Numa delas descreveu, no que viria a ser um clássico da propaganda, a decolagem de um avião da Vasp. 

Deixou a área no final dos anos 90, quando a frieza da tecnologia passou a substituir cordas, percussão e sopros. Não, aquela estética definitivamente não era para ele. 

- Se você botar um elefante tocando teclado, aceitam do mesmo jeito.

Distante da sofreguidão, da busca desesperada pelo sucesso, do vale-tudo imposto pelo tal mercado, em 2017 gravou o álbum "Tatanagüê”. Agora, com Adylson Godoy, Dino Galvão Bueno e os respectivos herdeiros musicais - Ricardo, Adriana e Anita -, reaparece com "Notas Brasileiras".

Theo de Barros pratica a arte de continuar sendo ele mesmo.


1976 - VASP - YouTube

https://www.youtube.com/watch?v=o_WpoPlHsec


Elis Regina-Menino das laranjas - YouTube

https://www.youtube.com/watch?v=v2qT2vEqBv8




Quarteto Novo - Vim de Santana - YouTube

https://www.youtube.com/watch?v=snwlE_51bME



https://www.youtube.com/watch?v=Rc98iIyebcA

terça-feira, 30 de maio de 2017

Nestico nasceu para tocar

FOTO: EDISON KIYOSHI
 

Por FERNANDO LICHTI BARROS

Um saxofone de plástico. Não era exatamente esse o presente de Natal que Ernesto Pinto de Aguiar Neto, o Nestico, esperava ganhar do pai. O garoto andava de olhos e ouvidos voltados ao trompete, à época em que Harry James despontava como astro do instrumento.

Paciência. Sem professor, ele, que já vinha experimentando uns acordes no piano, passou a soprar o sax, inicialmente sem grande entusiasmo – até o dia em que se enfeitiçou ao ouvir pela tevê o grave do tenor do grupo Bill Halley e Seus Cometas.

Em 1962, aos 18 anos, estreou profissionalmente com The Jet Blacks na Lancaster, na rua Augusta; depois, outras boates viriam. No ano seguinte gravou “Twist”, o primeiro LP do grupo. O melhor dos mundos: tocar, receber cachês, passear de táxi, namorar, assinar o improviso rouco na gravação de “Rua Augusta” feita por Ronnie Cord e ter grana para frequentar boates na condição de cliente.

Numa delas, a Cave, ouviu o Sambossa 5, com Maguinho ao trompete. Em 67, depois de muitos bailes feitos com os conjuntos Arpège e Três América, Nestico estava ao lado do mesmo Maguinho e do trombonista Raul de Souza compondo os sopros do RC-7 de Roberto Carlos em shows, gravações e no filme “Roberto Carlos em Ritmo de Aventura”, dirigido por Roberto Farias. Na trilha, um tema de Nestico, o blues “Coisa”.

Pouco antes de ser contratado por Roberto, Nestico conversava com o arranjador, instrumentista e cantor Zé Bicão em frente ao bar Baiuquinha, na Praça Roosevelt. Num dado momento, Bicão saiu-se com essa:

- Quem nasceu pra tocar tem que tocar.

Nestico guardou a frase num canto da memória. Dono de extraordinário talento, tornou-se referência entre os músicos, um jazzista prodigioso.

Na década de 80 fez com o Syncro Jazz um LP e uma apresentação histórica no Teatro Municipal de São Paulo. O grupo, do qual originalmente faziam parte o também saxofonista Vidal Sbrigh e o trompetista Dorimar, vinha então atuando como quarteto, formado por Nestico, Pete Wooley (contrabaixo), Ronny Machado (bateria) e Lilu (piano). 

Lilu era irmã e anjo da guarda de Nestico. Internado no Hospital do Servidor Municipal para tratar uma pneumonia, ele se despediu numa noite fria de junho.

Grande músico, grande cara, o Nestico.

https://www.youtube.com/watch?v=6BbFhy7dzJY



"Quando" - Roberto Carlos em Ritmo de Aventura - YouTube

https://www.youtube.com/watch?v=6udKuPfczWM