quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Luz Vermelha solta a voz

 Por FERNANDO LICHTI BARROS


Nada mais daquele guarda-roupa estiloso adotado no auge da fama para dançar iê-iê-iê em boates de Santos. Em agosto de 1987, quando nos encontramos, João Acácio vestia calça caqui, camiseta branca e tênis de pano. Nos cabelos curtos trazia discretos sinais de embranquecimento. Era um sábado de agosto. Vinte anos antes ele, o Bandido da Luz Vermelha, havia sido preso após longa caçada policial.

Na sala onde eu o entrevistava para O Estado de S. Paulo, João Acácio se dizia regenerado. Já não estava ali, na Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, onde conversávamos, o homem destemido que nos anos 60 roubava joias e dinheiro em casas luxuosas depois de acordar os moradores com o clarão de uma lanterna. Nem o sujeito que teve a ousadia de revelar a um desembargador a vontade de matar algumas autoridades e depois “morrer com seis tiros na cara”. Menos ainda o galanteador incorrigível que, em plena sessão de julgamento, lançou piscadelas a uma mulher.

Citado em 94 processos como autor de assaltos, homicídios e estupros, ele se declarava regenerado. "Sou honesto, bacana, amigo de Deus". Sua rotina agora se resumia ao trabalho na oficina de montagem de prendedores de roupa e à leitura da Bíblia. Aprendera a ser “humilde, manso”, apesar de uma ou outra recaída para os lados da imodéstia – ainda se achava sábio e bonito, ainda se mostrava orgulhoso das façanhas que o transformaram num “bandido famoso, noticiado pela imprensa internacional”. Coisas do passado. Quem se apresentava ali, aos 45 anos, era um homem cujos prazeres, revelados em meio a frases atropeladas, não iam além de comer chocolate e cantar. 

Ofereceu a mim e a “toda a humanidade” interpretações emocionadas de "Caminhoneiro", de Roberto e Erasmo Carlos, e de "Cowboy fora da lei" e “Gita, de Paulo Coelho e Raul Seixas. Presenteou-me com um livreto, “Novo Testamento – Salmos, provérbios”. No início, uma frase escrita a caneta: “Luz Vermelha ama só a Deus”, afirmação desmontada numa das páginas finais: “Luz Vermelha não ama ninguém”. Antes de ser reconduzido à cela, caminhando por um corredor mal iluminado, voltou-se para mim e prenunciou: “Hoje você vai sonhar comigo”. Não deu outra.

Numa Remington da Casa de Custódia escrevi o texto, transmitido ao jornal por telefone. Quatro meses depois recebi uma carta de João Acácio. Outras viriam, também endereçadas ao fotógrafo Newton Aguiar, meu parceiro naquela entrevista. Em todas, a mesma despedida: “Respeitosamente, assino-me: João Acácio Pereira da Costa, o saudoso e inesquecível ex-Bandido da Luz Vermelha”. 

Agradecia pela visita, uma das raras recebidas em vinte anos na prisão, seis deles passados no Manicômio Judiciário. Depois do Estadão, ele contava, até Gil Gomes o havia procurado com uma equipe da TV Record para uma “produção estupenda”. Alternando frases escritas com tinta azul e vermelha, desejou-me um Feliz Natal, “com todo conforto” e um cardápio variado, composto por “bananas, champanhe, uísque, chocolate, nozes e - por que não? - amendoins”.

Numa outra carta, o ex-Luz afirmou ter sido “positivamente o homem que bateu recorde nas paixões, nas perseveranças e na saudade que abalou corações”. E continuou: “Como homem de fabulosa fama internacional, sempre fui curioso e vivi uma vida historiada... Fui homem que passou para a galeria dos bandidos lendários, fui manchete de jornais e cheguei a ser recorde e sucesso de literatura”. Tudo isso até o dia em que alguma coisa aconteceu: “Entrei em eclipse lunar e solar, e assim, num duelo de titã entre o crime e a perfeição, vi que o crime não compensa”.

João Acácio ficou preso até 1997 e voltou para Joinville, a cidade natal, onde seria assassinado.

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Texto de Fernando Lichti Barros publicado pelo caderno Ilustríssima, da Folha de s. Paulo, em 27 de agosto de 2017.

domingo, 4 de setembro de 2022

Entre jazzistas e pés-de-valsa

Por FERNANDO LICHTI BARROS 

Ilustração: Caco Bressane

Lá vai Mário Edson, alto, magro, pensativo, caminhando pelo Centro. Da Avenida São Luiz enxerga a Galeria Metrópole, onde tocou nos últimos quatro anos; atravessa a Consolação e, na Martins Fontes, diminui o passo.

Não, definitivamente não é justo estar desempregado o músico entusiasmado, o professor que levou a um programa de tevê o coral da escola estadual da Vila Matilde para cantar Viola Enluarada com Os Cariocas, o iconoclasta que invadiu com um samba-exaltação o ultrabossanovista Juão Sebastião Bar.

Mário anda até a Rua Avanhandava. Entra no Jogral, reinaugurado neste ano de 1968, e pergunta se precisam de pianista. Precisam. No dia seguinte, ele estreia. Com o seu quarteto, passará a esquentar as noitadas ao lado do Trio Mocotó, Manezinho da Flauta, Adauto Santos, Leo Karam e outros artistas. Na porta, filas; na plateia abarrotada, estrangeiros atentos ao suingue local. Aparecem Erroll Garner, The Single Swingers, Michel Legrand e, sem negar-se a dar canjas bem temperadas, Oscar Peterson e Sarah Vaughan.

Natural que episódios assim aconteçam no Centro, o chão de encontros, trocas e fusões. Dizzy Gillespie que o diga. Em 1961, ele recebe cumprimentos e elogios após a apresentação do mais puro bebop no Teatro Record, mas quer mesmo é conhecer o teatro popular de Solano Trindade. Desejo atendido: no auditório da Rádio Eldorado, aonde é levado, ele fotografa o espetáculo e não resiste à percussão e à coreografia: integra-se ao maracatu, à batucada, ao frevo do grupo de Embu das Artes.

Ilustração: Caco Bressane
Não se preocupem os jazzófilos que, por uma ou outra razão, não conseguiram acompanhar Dizzy em sua passagem por São Paulo. Ele voltará. E, se fazem questão de ouvir som com sotaque norte-americano, nem precisam esperar. O saxofonista Herb Geller, que veio para cá com a orquestra de Benny Goodman, desgarrou-se. Está tocando no Stardust, na Praça Roosevelt.

Divirta-se, Herb. Caso seja acometido por tremores decorrentes de um sentimento nostálgico, procure o antídoto no Teatro de Arena. Toda segunda-feira é dedicada ao jazz. Lá, aproveite para observar os colegas brasileiros. A maioria cursou a escola dos bailes, dos discos, das retretas, do circo, das ruas, formação que os capacita a enveredar por todos os gêneros com personalidade e valentia. Observe aquele rapaz, o Carlos Alberto Alcântara: foi tintureiro, passou do cavaquinho e do banjo para o sax, fez bailes no interior do Paraná e de São Paulo com orquestras regidas pelo pai, e agora, ainda na faixa dos trinta anos, escolhe notas com a sensatez de um veterano.

Muitos outros músicos de cancha têm histórico de luta por aprendizagem e imersão no trabalho. Bauru, baritonista da orquestra de Dick Farney, tomou as primeiras lições com Dito Dezoito, coveiro e clarinetista em Potirendaba, no interior do estado. Odésio Jericó, antes de ser trompetista disputado pelas big bands, tocou em procissões e festas cívicas com a Philarmônica 21 de Setembro, em Petrolina, Pernambuco. Jovito abandonou sua especialidade, o bongô, e com a cara e a coragem tornou-se baterista na boate Lancaster. Mazinho, o menino de 15 anos que deixa boquiabertos os frequentadores de boliches e inferninhos com solos de sax alto, profissionalizou-se no Circo Rosário, na região de Ribeirão Preto.

Ilustração: Caco Bressane

Falta rememorar o caminho percorrido pelo trombonista Bil. Ex-sapateiro e lavador de cavalos, ele foi discípulo do maestro Brasiliano, da banda de Macaparana, em Pernambuco. Em Limoeiro, aperfeiçoou-se com Cazuzinha, pai de Severino Araújo; trabalhou em cabarés, em emissoras de rádio de Recife e João Pessoa; gravou com Jackson do Pandeiro e excursionou com o Circo Garcia. Em 54, desembarcou em São Paulo, contratado pela orquestra Clóvis Ely, atração do Clube OK, na Rua Conselheiro Nébias. Era um dos vários salões de dança do Centro.

No ano anterior, um deles, o Clube Elite 28 de Setembro, foi destruído pelo incêndio que matou 53 pessoas durante o Baile de Santo Antônio. Absorvida a tragédia, as pistas do Chuá, Caçamba, Cuba, Tropical, Lilás e várias outras continuaram cheias. Pé-de-valsa que se preze até hoje calça um pisante lustroso para dançar o puladinho no Som de Cristal, na Rego Freitas. Se do nada o tenorista Adolar tirar um Body and Soul emocionado, melhor: colam-se corpos e almas, em resposta à maravilha que, na mesma medida, a noite proporciona na gafieira ou no Teatro Municipal, onde Elizeth Cardoso, esplendorosa, canta Villa-Lobos, onde em cada arranjo Duke Ellington reafirma apreço à música, onde o Carnaval eclode com a orquestra de Osmar Milani.

Bil, o trombonista, por anos atuou em big bands como a de Milani. Lidera um naipe que faz até quatro sessões de gravação num mesmo dia. Pode estar, agora, num estúdio com a Banda Tropicalista de Rogério Duprat, divertindo-se em interpretações caricatas de clássicos do cancioneiro. Ou, com o maestro Portinho, registrando a base da balada em que Nelson Ned, certeiro, lembra que tudo, tudo passará. 

Sábio Ned. Se nada é para sempre, dancemos um chá-chá-chá. No palco do Avenida Danças, ali na Ipiranga, quando sobe a cortina vermelha, a orquestra começa a tocar.

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Da série Música no Ar: Um passeio pelo Centro na década de 1960, de Fernando Lichti Barros, publicado pelo Sesc 24 de Maio.

 https://open.spotify.com/playlist/0poQf5dunsm1kajbt0lKHb?si=GIvqGxjYRI2Y8soHrKTSyQ&utm_source=native-share-menu


sexta-feira, 2 de setembro de 2022

É preciso cantar

 Por FERNANDO LICHTI BARROS

Ilustração: Caco Bressane

Não se preocupe: a voz que você ouve enquanto abre o crediário não é a da sua consciência alertando para os riscos do endividamento. É, sim, o canto de Wilson Simonal, Altemar Dutra, Chico Buarque, Nara Leão, Martinha ou Erasmo Carlos. Agora mais relaxado, feliz com a camisola sanfonada ou o terno de tropical que comprou em prestações, você pode assistir ao show ali mesmo, na Clipper, a loja de departamentos do Largo de Santa Cecília.

Não se assuste: o que você vê no Ela, Cravo e Canela enquanto bebe um gim-tônica não são imagens delirantes do seu inconsciente, embaralhando liberação de costumes com refinada crítica ao autoritarismo. É, sim, um desfile de mulheres de topless ou a ante-estreia de Liberdade, Liberdade, a peça teatral de Millôr Fernandes e Flávio Rangel, em que Paulo Autran apresenta uma colagem de pensamentos de Garcia Lorca, Aristóteles, Tiradentes, Stanislaw Ponte Preta e Carlos Drummond de Andrade.

Assim como na Clipper, atividades diversas cabem no Ela, Cravo e Canela.  O forte do bar da Rua Major Sertório, porém, é a música. Isso ficou chancelado já na noite de inauguração, em 21 de abril de 1964. Sabe quem estava lá? Papudinho, Azeitona, Zinho e Cido Bianchi, trompete, baixo, bateria e piano em mãos insuspeitas. Não tivessem sido contratados para o evento, eles seguramente iriam tocar em outra freguesia. Ainda é grande a oferta de trabalho, apesar das piscadelas de sinal amarelo emitidas pela incipiente concorrência do som eletrônico que o Djalma’s, por exemplo, vai adotar. Ainda há, para completar, uma ala dos notívagos deixando-se cooptar pelo pijama de listras e as imagens em preto e branco da televisão.

Arrependam-se, traidores da causa. Saibam que a sua tibieza não impede a multiplicação das boates, nem o cortejo feito aos heróis da resistência com atrações musicais para todos os gostos. É só escolher o que vem por aí: Inezita Barroso e o Brasil rural no Jardim de Inverno Fasano, Bienvenido Granda e a dramaticidade latino-americana no Clube de Paris, Leny Eversong e a influência do jazz no Ela, Cravo e Canela, e na Oásis a previsão de público em delírio com Babalu na interpretação de Angela Maria. No Saloon, The Jet Blacks defendem as cores do iê-iê-iê, enquanto a bossa nova instrumental faz residência com o Esquema-3, de Claudio Slon, no Captain’s Bar; no Juão Sebastião Bar, com o quarteto de Ely Arcoverde, e na Baiuca com o Sansa Trio, de José Briamonte.

Ilustração: Caco Bressane
Pianista e arranjador, Briamonte é admirado por Johnny Alf. Não é pouca coisa. Johnny, a bossa em pessoa, semeia o gênero nas madrugadas da Pauliceia. Hoje ele está no Le Club, no Centro Metropolitano de Compras, o nome oficial da Galeria Metrópole. Para sucedê-lo, sempre haverá um nome expressivo, uma artista com os atributos de Sylvinha Telles. Musicalidade, afinação, pronúncia, às vezes um leve e sensual arranhado na voz, o charme evidente no LP gravado nos Estados Unidos com o guitarrista Barney Kessel, tudo isso sobressai no show de Sylvinha, no Le Club.

Pode ser que a casa esteja lotada, mas nunca fica ao desamparo quem anda sob os plátanos da Avenida São Luiz em direção à Galeria Metrópole. São 32 as casas noturnas, de tórridos inferninhos a ambientes que, para sugerir luxuosidade, tanto recorrem à luz indireta de abajures e ao conforto dos estofados como aos tristes pingos de um chafariz.

The Open Door, Aquela Rosa Amarela, Bar Bossinha, Eve, Canto Terzo, O Barquinho, e assim vão as boates em serpenteio pelos pavimentos da galeria. No ar, um pot-pourri de estilos e gerações que junta Jorge Costa, Gilberto Gil, Claudia Barroso, Silvia Goes, José Roberto Beltrami, Modern Tropical Quintet e outros intérpretes.

Aos menos abastados, uma dica: quando o estômago roncar, deem uma chegada ao Sandchurra, no subsolo. Preços módicos e porções generosas. Com jeitinho, pendura-se a conta. Melhor ainda, fica perto do Jogral, para onde se encaminha um senhor que usa bigode e passa o dia mergulhado em estudos herpetológicos.

Ilustração: Caco Bressane
O Jogral é o bar do compositor Luiz Carlos Paraná, que toma leite enquanto os amigos emborcam biritas aos hectolitros. E o senhor de bigode, quem é? Alojado no bar de que é um dos mais assíduos frequentadores, ele deixa de ser o professor doutor que veste jaleco no Museu de Zoologia da USP e se transforma num PhD das artes boêmias. Paulo Vanzolini aprecia a cachaça com gelo servida pelo garçom Antoninho, tamborila na caixa de fósforos e, com olhos de cronista, utiliza em Ronda e Praça Clóvis cenários de uma cidade onde, aliás, as transformações são constantes. Uma delas desagrada ao público do Jogral: a galeria, em 67, parece outra, mais agitada, mais ruidosa.

A partir do ano seguinte, ao passar pelo nº 16 da Rua Avanhandava, não se espante: as vozes que lhe soam familiares podem ser, sim, de Clementina de Jesus, Adoniran Barbosa, Luiz Gonzaga ou Lupicínio Rodrigues. No novo Jogral, em todo lugar, mais que nunca é preciso cantar. 

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Da série Música no Ar: Um passeio pelo Centro na década de 1960, de Fernando Lichti Barros, publicada pelo Sesc 24 de Maio.

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