segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Jericó, imensamente brasileiro


POR FERNANDO LICHTI BARROS

A sonoridade tirada do instrumento, a camaradagem a garantir o resultado bonito do naipe, o fraseado inventivo, o improviso que estende um tapete melódico para generosamente propor a volta ao tema, tudo revela o homem cordial que é Odésio Jericó.  

Pela primeira vez, em 80 anos de vida e 65 de profissão, ele tem o nome estampado como protagonista na capa de um disco. Trabalho de uma década inteira, iniciado no dia em que o também trompetista Nahor Gomes se perguntou durante uma apresentação da Banda Mantiqueira: "Como pode não ter sido feito até hoje um registro do trabalho desse cara?". 

O cara era Jericó em pleno solo, um voo pelo céu do Brasil, e lá do alto se enxergava sua cidade, Petrolina, ele nos coretos, nas festas cívicas e procissões como integrante da Banda Philarmonica 21 de Setembro, depois enchendo os salões com samba-exaltação, mambo e frevo nos bailes animados pela orquestra União Jazz. 

Até chegar às nove faixas deste CD, Jericó percorreu a trajetória típica dos músicos brasileiros de várias gerações. Sem métodos, sem conservatórios, fez da prática a sua escola. Em 1959 foi viver em Santos, em 61 mudou-se para São Paulo. Trabalhou em boates, inferninhos, gafieiras. Fez bailes, muitos bailes, com as orquestras de Osmar Milani, Silvio Mazzucca, Carlos Piper, Dick Farney e Élcio Álvares. 

Ouviu jazz em LPs e seguiu em frente, sem se prender a receitas ou modos. Boa-praça, facilitou a vida dos crooners volteando a melodia com os improvisos aveludados que são hoje sua assinatura. Partiu para o iê-iê-iê com o conjunto Os Impossíveis, excursionou com Sammy Davis Jr e Julio Iglesias, gravou, por exemplo, com Nelson Gonçalves, Antonio Marcos, Arrigo Barnabé, Elza Soares, Mônica Salmaso, Trio Mocotó e Banda Mantiqueira, à qual permanece fiel desde a criação, em 1991.

Dessa rica mistura originou-se o estilo que desperta a admiração de tanta gente, a começar pelo grupo coordenado por Nahor Gomes - 79 pessoas que se juntaram para documentar um pouco da história desse músico imensamente brasileiro. 

Palmas para Odésio Jericó.

Disco do Jericó - YouTube


segunda-feira, 27 de maio de 2019

Paulinho, Rosinha, Macumbinha

 Por FERNANDO LICHTI BARROS

  Ilustração: Siga Balsyte Ribeiro
                                                
Desemprego, custo de vida nas alturas, violência exaltada pelo Estado - vá enumerando os perrengues, até ouvir estrelas, três estrelas do violão brasileiro. Paulinho Nogueira, Rosinha de Valença e Macumbinha transformam em harmonia os horrores do entorno. Resistem, fazem arte numa hora dessas, 1975. 

Depois de um período dedicado ao ensino, Paulinho reaparece em show no teatro da Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo.

Toca Ernesto Nazareth, Bach, Jobim, toca um trecho da trilha que fez para o longa metragem "Meu nome é Tonho", de Ozualdo Candeias; elogia João Bosco, Aldir Blanc, Caymmi; canta alguma coisa de Simplesmente, um disco feito de essências.

É seu jeito de provocar a máquina do sucesso. "Simplicidade não quer dizer pobreza. Simplicidade seria a ausência do superficialismo", ele diz, antes de ir para o palco.

No mesmo lugar logo estreará Rosinha de Valença, acompanhada por um sexteto. Ela vê uma onda de dificuldades avançar sobre os instrumentistas. Queixa-se de falta de espaço, diz que os músicos brasileiros estão entre os melhores do mundo e, mesmo assim, "têm que lutar para mostrar o que sentem". 

Rosinha vai sair por aí com o sexteto. Quer espalhar informação, incentivar os colegas, levar adiante a música que faz desde que despontou no Beco das Garrafas, no Rio, em 1963.

Foi em 1963, aliás, que um disco mudou a vida de Macumbinha.  Ao ouvi-lo - eram solos de Paulinho Nogueira -, arriscou-se a dedilhar as seis cordas, e em 65 já estava em evidência como intérprete do jequibau, o ritmo criado por Cyro Pereira e Mario Albanese.

Quatro anos mais tarde Oscar Peterson veio ao Brasil. Ouviu o violão daquele garoto, levantou-se, deu-lhe um abraço e o chamou de 'meu filho'. Entre 1970 e 71, Macumbinha esteve com o Brazilian Octopus na gravação de um disco da cantora Claudia, fez raras apresentações com um grupo liderado por Hermeto Pascoal - quatro violões e percussão - e  encarou a noite com o grupo Macumbinha e A Família.

Chegou a idealizar com essa turma um LP nunca realizado. "Quando a gente quer fazer um som legal, dizem que é anticomercial. A situação é ruim. Ninguém liga para os músicos." 

Texto baseado em matérias publicadas pelo autor do blog no Diário da Noite, em 1975