segunda-feira, 13 de abril de 2020

Moraes, malandro de fé e de filosofia



POR FERNANDO LICHTI BARROS



 Moraes Moreira defendia a necessidade de ser meio Garrincha, meio Elza Soares para vencer barreiras com drible e balanço. Era agosto de 1977. Conversávamos sobre  "Cara e Coração", seu segundo disco pós-Novos Baianos, sobre a canção que ele compôs em homenagem ao filho Davi, então com quatro anos, e sobre a retomada do choro. Moraes falou também sobre intuição, sobre a apuração do seu estilo. E ainda recitou a letra de "Erupções Cutâneas", parceria dele com Chacal, vetada pelo Departamento de Censura da Polícia Federal. O resultado desse encontro foi publicado pelo autor deste blog no Diário de S. Paulo.


Um sambista baiano, um artista, um bandido, um cigano.
O que é?
Com a bola no pé e a viola na mão, vê se você destrincha.
Eu sou Elza Soares, eu sou Mané Garrincha.

A letra de "O que é, o que é" se parece muito com o seu criador, Moraes Moreira, 30 anos, que durante cinco fez parte dos Novos Baianos. “Eu acho que eu sou mais ou menos isso daí. Na vida, tem hora que você tem que  ser Mané Garrincha: tem que dar um drible. E tem hora que você tem que ser Elza Soares: tem que dar uma balançada, se não você não leva, sabe como é”.

Antonio Carlos Moraes Pires começou a driblar e balançar muito cedo, em Ituaçu, a cidade onde nasceu e passou a infância, na Bahia. Sanfona na mão ou bola no pé, aprendeu que quem transa seus males espanta. Foi para Salvador, entrou no Seminário de Música, onde conheceu Tom Zé, um grande incentivador.
Depois, com Galvão, Paulinho Boca de Cantor e Baby Consuelo, formou os Novos Baianos. O primeiro show - "Desembarque dos Bichos" -, a chegada ao eixo SP-Rio e, enquanto isso, captando o visto, ouvido e vivido nessas andanças. "Vivendo e aprendendo", diz ele. Resultado: um trabalho brasileiro.

                          VIVO!

 Agora, a Som livre está lançando o segundo LP de Moraes Moreira, “Cara e Coração”.. Foram oito meses de amadurecimento.

--Tinha uma ideia inicial e fui fazendo devagarzinho. Enfrentei a maior barra, inclusive quanto à sobrevivência.

Ao vivo e em cores, Moraes mostrou até anteontem, no teatro da Fundação Armando Alvares Penteado, seu momento musical.”Com esse disco eu acho que cheguei a um ponto em que procurei apurar meu estilo. Tudo o que me identifica – a maneira de compor, de tocar violão – eu procurei mostrar no disco”.

“Cara e coração" traz, entre outras músicas, “Meio fio”, com letra de Chacal, “Davilicença” (“um choro de quintal, feito para o meu filho de quatro anos”) e “Yogue de ouvido” (“que é o que você inventa, a sua maneira de ser, a intuição”), essas duas em parceria com o guitarrista e bandolinista Armandinho; “Às três da manhã", de Herivento Martins (“que eu considero um dos maiores compositores”) e “Pombo Correio”, melodia composta em 1950 pelos fundadores do Trio Elétrico Dodô e Osmar, com letra feita recentemente por Moares.

No disco era para ter também “Erupções Cutâneas”, com letra de Chacal.

Nesses dias saí com uma mina, uma tal de Leontina

Levei ela lá na Quinta da Boa Vista

Um bom passeio no Jardim Zoológico

Leontina, minha mina, se amarrou no crocodilo com cara de esquilo.

Até aí foi tudo bem

Mas no terceiro saco de amendoim

que a gente repartia com o elefante

enquanto eu começava a ficar ofegante por Leontina

ela começou a eruptar 
É que aquela macaca tinha erupções cutâneas das mais estranhas quando comia amendoim

Ai de mim

Mas essa a Censura Federal achou “atentatória à moral e aos bons costumes”.

             JUVENTUDE NO CHORO

Moraes conta: “Disco, se jogar na praça e não pintar, dança. E a fábrica não faz a menor força.” Outra coisa: “Tocar na rádio é uma barra. Não basta cê fazer um bom disco. Quer dizer: aí já estamos entrando no velho terreno das injustiças que perseguem o artista brasileiro. Para que um trabalho seja divulgado é preciso superar antes as  exigências e imposições dos meios de divulgação”.

E lá vai Moraes Moreira, de “Cara e Coração”, mostrar seu trabalho. “O artista, em vez de ficar se lamentando, tem que encarar. Eu tô a fim de trabalhar. Tô com disco pronto e com o show. Tô aí. A coisa de trabalhar me fortalece demais”.

As músicas de Moraes Moreira vão do samba ao rock, do frevo ao choro. Com um detalhe: tudo leva sua marca, o seu jeito. Nada de ficar apenas  preservando em nome das raízes ou o que for.

-- Por exemplo, tô vendo esse negócio de choro, esse movimento como muito bom, mas é preciso, além de preservar, criar coisas novas, botar nossa juventude em cima do choro.


Não, não tem lógica

Jogue por música.

Não, não tem música

Toque de ouvido

Yogue de ouvido

Vidente, poeta

Malandro de fé e de filosofia

Morou, Maria?

Como ele canta em “Yogue de ouvido", Moraes vai  encarando tudo à sua maneira. “Minha proposta é mais musical do que  qualquer coisa. Tô fazendo um trabalho alegre, as pessoas cantam e dançam comigo. Há uma resposta, e isso dá a maior força”.

Acompanhado por um grupo de músicos jovens, “todo mundo participando, cada um existindo”, Moraes Moreira trabalha. “Tem que transar. Trabalho é vida. E música é onde eu falo melhor”.

Morou, Maria?

31 de jul. de 2018 - Vídeo enviado por Moraes Moreira - Topic
Yogue de Ouvido · Moraes Moreira Cara e Coração1977 Som Livre