domingo, 21 de agosto de 2022

Da Excelsior ao Cave

 Por FERNANDO LICHTI BARROS

Ilustração: Caco Bressane

Estão perdoados os que buscam a Rua Nestor Pestana apenas para se refestelar com os capeletes, raviólis e escalopes do restaurante Gigetto. 

Se soubessem o que ocorre no entorno, esses aprendizes de boêmios acrescentariam ao roteiro a degustação de biscoitos finos. Teriam ido à vizinha Praça Roosevelt para ouvir, na Chicote, a voz de Dalva de Oliveira; no Murada’s, da Martins Fontes, o piano de Edmundo Villani-Cortes; na Nove de Julho, o trio de Manfredo Fest no bar do Hotel Cambridge.

Mas se achassem mais cômodo ater-se à Nestor Pestana, os não iniciados seriam da mesma forma agraciados pelas delícias, pelos mistérios da madrugada.

Um súbito estado de encantamento produzido por bemóis e sustenidos talvez os conduzisse, a poucos passos do restaurante, ao Moacyr’s, o bar administrado por Moacyr Peixoto, irmão de Cauby. É um sujeito boa-praça, músico habilidoso, mas gerenciar o negócio, dizem, não é exatamente o forte dele. Bordados da criação pianística, aplicados ao jazz, o entusiasmam bem mais do que compras, contabilidade e demais tarefas administrativas. Então, corram: será efêmera a existência da casa.

Não desistam caso o Moacyr’s tenha fechado as portas. Um outro espetáculo se descortina, quase em frente ao Gigetto. Impossível ignorá-lo: mede 48 metros de largura por oito de altura, leva a assinatura de Di Cavalcanti, chama-se Alegoria das Artes e está permanentemente exposto. Fica no alto da fachada do Teatro Cultura Artística, onde a música tem lugar de honra. 

Erudita ou popular, chame-a como quiser. Acima de vãs filosofias, ela comparece ao teatro desde a cerimônia de inauguração, em 1950, com Villa-Lobos, Camargo Guarnieri e a Sinfônica de São Paulo. Foi o início de uma sucessão de concertos memoráveis, de arrebatamentos iguais ao provocado, seis anos depois, pelo saxofonista Casé quando improvisou em Risque, de Ary Barroso, durante o 1º Festival de Jazz de São Paulo. E continua presente, a musa, nessa década de 60.

No Cultura Artística agora funciona a TV Excelsior. Locatária do teatro, a emissora se escancara para a música. Estrelas da importância de Elizeth Cardoso, Sylvia Telles, Alaíde Costa e Odete Lara brilham na programação. Desfilam compositores do porte de Dorival Caymmi, Ataulfo Alves e Lamartine Babo; cantores consagrados (Lucio Alves, Cyro Monteiro e Nelson Gonçalves, por exemplo) e os instrumentistas extraordinários das orquestras de Simonetti e Sylvio Mazzucca.

E que movimentação é aquela na porta? É Ray Charles tentando entrar, escoltado por homens da Guarda Civil e da Força Pública. Vai fazer show acompanhado por orquestra e coral. Outras formações, menores mas não menos charmosas, participam de programas comandados por Luiz Vieira, Moacyr Franco e Bibi Ferreira. Num deles, João Gilberto, reverencioso, com a fala mansa, derrete-se diante de Orlando Silva.

No final dos anos 50, o mesmo João andou aparecendo no Cave Bar. Deu canjas substanciais. Canções de Geraldo Pereira, de Antonio Carlos Jobim, um jeito de tocar e cantar que é só dele, e isso é muito natural.

                                                        Ilustração: Caco Bressane
Para se conhecer o Cave, basta caminhar pela Nestor rumo à Consolação. Dobre à direita. Perto da esquina, receba as boas-vindas do porteiro Gunga Din e atravesse um corredor de nove ou dez metros. Acomode-se. Conselho de amigo: antes da bebida, peça um picadinho, especialidade culinária da casa. É preciso preparar-se para a possibilidade de sofrer emoções fortes. Do contrário, poucos, na segunda metade da década de 50, teriam sobrevivido enquanto, em cada samba-canção, Maysa relatava amores desfeitos. Interpretações quentes, verdadeiras, e, nos olhos, os oceanos não pacíficos versejados por Manuel Bandeira.

Respire. Coisas assim não raro sucedem na Cave frente ao seu público diversificado, gente da televisão, gente endinheirada ou nem tanto, jornalistas, poetas, seresteiros, namorados.

Os motorizados deixam na rua os seus Simcas, DKWs ou Aero-Willys, sob a vigilância de um garoto que mora em Guaianazes e, em dias de sorte, atua como extra na TV Excelsior. Às vezes, dependendo do humor de Gunga Din, o menino (Romeu é o nome dele) consegue dar uma espiada lá dentro. Vê mesas pequenas, fumaça de cigarro, turmas em conversas animadas.

Eis que, não mais que de repente, Vinicius de Moraes dirige-se ao microfone e canta. O pianista ouve uma vez. Na segunda, estende um tapete de belos acordes e acompanha Formosa, um samba até então inédito em São Paulo.

Quer pistas sobre o pianista? É carioca. No Rio, tocou na Cantina do César, no bar do Hotel Plazza, gravou discos em 78 rotações. Veio para São Paulo e por aqui ficou. Gosta de Cole Porter e Gershwin, gosta do trabalho noturno. Não guarda dinheiro. Se a dureza aperta, ele dá aula ou ganha algum fazendo demonstração de partitura em loja. Modéstia desmedida. Nunca foi visto gabando-se de, na onda do vai e vem, ter-se antecipado à bossa nova ao compor uma canção em que faz o elogio do despojamento.

Johnny Alf é um rapaz de bem.

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Da série Música no Ar: Um passeio pelo Centro na década de 1960, de Fernando Lichti Barros, publicada pelo Sesc 24 de Maio.


Sylvia Telles e Rosinha De Valença - "Samba Torto" (1966) (HQ). 12,242 views12K views. Oct 19, 2018. 549. Dislike. Share. Save.
YouTube · Fábio Souza · 19 de out. de 2018


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