segunda-feira, 25 de julho de 2016

O Harlem de Casé

Por FERNANDO LICHTI BARROS

Foi em benefício da família de Mané Careca, trompetista acometido por um AVC, que o pianista Roberto Farath organizou a Noite de Gala da Música em São José do Rio PretoEra 1972.

José Ferreira Godinho Filho, o Casé, não conhecia Careca, mas logo se prontificou a participar do show no Automóvel Clube, marcado para 22 de novembro, dia de Santa Cecília, padroeira dos músicos.

O saxofonista estava em Rio Preto, interior de São Paulo, para uma temporada de bailes com o conjunto de Renato Perez.

A seu respeito misturavam-se histórias sobre as maravilhas extraídas do sax alto e um comportamento desconcertante – a repulsa à vaidade e seus inúteis serpenteios, a conversa toda mansa roçada por súbitas tiradas filosóficas, o silêncio em repouso num copo de martíni, as horas à toa na praça central em companhia de cães sem dono.

Noite do show. Em cena, músicos arregimentados na região - a cozinha, quatro trombones, cinco saxofones, quatro pistons.

“Ele é um dos maiores do mundo, e é modesto à beça”, diz Farath ao microfone, antes de apresentar Casé, autor do arranjo e do solo que virão.

Um gravador de rolo é acionado e registra Harlem Nocturne, a balada triste, triste que o saxofonista tocará enquanto viver. Até 30 de novembro de 1978, quando seu corpo, coberto por marcas de agressão, for encontrado no chão de um hotel da Boca do Lixo, em São Paulo.

                                           Ouça a gravação AQUI:
                                            
                                                     
                                                 
                                                 
                                            

sexta-feira, 22 de julho de 2016

Uma sanfona contra a merreca

Por FERNANDO LICHTI BARROS

Asa Branca uma, duas, dez, vinte vezes. Pode pedir que Nivaldo toca, não se queixa e nem fica bravo. “Se braveza valesse, Lampião tinha ficado rico”, diz ele.

O baiano de Inhambupe acorda bem cedo em São Mateus, na zona leste de São Paulo, pega a sanfona Hohner preta, vai para o ponto de ônibus e segue ao encontro dos parceiros Zé Vieira e Daniel, cearenses do Cariri.

No Largo da Batata, em São Miguel, Mauá, numa praça qualquer, por volta das dez da manhã eles cobrem a cabeça com chapéu de vaqueiro e se transformam no Trio Beija-Flor Nordestino.

Acompanhada por triângulo e zabumba, a sanfona chora durante cinco ou seis horas, a não ser que uma chuva encurte o espetáculo. Dá-lhe baião, dá-lhe xaxado, samba, vá pedindo que eles atendem. Só não venha com o tal do funk. “Isso é música sem origem”, fala Nivaldo, de 70 anos. 


 Um ano mais moço que o ex-prensista Zé Vieira e três mais velho que o ex-ajudante geral Daniel, seus parceiros, ele trabalhou na construção civil até se aposentar. O salário liberado pelo INSS é tão esquálido, que Nivaldo recorre a um gesto - aperta o indicador contra o polegar da mão direita – para traduzir o valor da merreca.

Mas a sanfona, companheira desde a infância, não lhe falta numa hora dessas. Com Daniel e Zé Vieira, recolhe da caixa de papelão deixada na calçada até R$ 240 por dia. Às vezes a arrecadação aumenta. E, se a sorte estiver mesmo de plantão, pode se aproximar uma boa alma e perguntar:

- Toca uma de Dominguinhos?



sábado, 16 de julho de 2016

A escola que Nenê cursou


Por FERNANDO LICHTI BARROS

Nenê Benvenutti estava no Alasca em 1989 para fazer shows e gravações. De repente, alguém quis saber quais as escolas por onde ele havia passado. O ex-baixista d´Os Incríveis sorriu: 

- Os bailes, o estúdio, a noite...  

Era o resumo da trajetória iniciada aos 12 anos com uma gravação em que tocou bateria - depois viriam as apresentações ao contrabaixo com The Rebels, o sucesso de O Milionário com Os Incríveis, a fase do instrumentista que vai gravar O menino da porteira com Sérgio Reis, vai acompanhar Elis Regina em teatro, Simonal em boate, Raul Seixas num garimpo em Itaituba, no Pará.

 Em 1967, a voz de Nenê se espalhou pelas ondas do rádio e da tevê dando tratos de pilantragem ao samba-canção Molambo. Nele o rapaz criado no bairro da Pompeia, em São Paulo, repetia o timbre pueril aplicado pelo norte-americano Chris Montez em The more I see you, num dos discos mais ouvidos do ano anterior.

Num dia de 1969, conversavam o baixista e Jorge Ben. “Vou fazer uma música pros Incríveis, quero que você cante”, disse o Babulina. 


Cumpriu a promessa: enquanto Os Incríveis gravavam um LP na RCA Victor, Jorge apareceu no estúdio. Ali mesmo, acompanhando-se ao violão, registrou O vendedor de bananas num gravador. A canção, incluída no disco, teve o reforço de Bauru, Maguinho, Felpudo e Broegas nos metais, e Nenê outra vez tornou-se cantor. Para ele, fácil: foi só fazer da voz um instrumento.

Os bailes, o estúdio, a noite... 













segunda-feira, 11 de julho de 2016

Sizão Machado e a senha de Chet Baker

Por FERNANDO LICHTI BARROS
       
                                                    Foto: Regis Filho
                                                                                               
Chet Baker buscava um baixista para fazer shows na França. Sizão Machado estava em Paris e conhecia Chet. Um ano antes, em 1985, eles haviam ficado lado a lado, em São Paulo, na primeira edição do Free Jazz Festival e na gravação do CD Rique Pantoja & Chet Baker.

Retomariam, agora, a parceria, mas para completar o quarteto de Chet nessa nova jornada Sizão precisava de um contrabaixo acústico. Se a questão era essa, o trompetista tratou logo de resolvê-la. Foi a uma loja, tirou mil dólares do bolso e comprou para o colega brasileiro um instrumento simples mas eficiente.

Começaram a ensaiar no hoteleco onde Chet se hospedava. Tudo certo no plano administrativo: para as oito apresentações programadas, as viagens seriam feitas de trem, e os três contratados ganhariam 500 dólares por show - cachê a que mais de uma vez o líder acrescentou até 80%. 

No terreno musical, a única regra era embarcar rumo à liberdade. A cada vez Chet dava à mesma música uma cara diferente. E, apesar da inexistência de bateria no grupo, sugeriu a Sizão que flanasse pelas harmonias, sem se prender a marcações rígidas, às notas de cabeça.
Com a voz pequena, entre frases mastigadas, ele disse ao baixista que não se preocupasse: “Vamos tocar juntos”. Era a senha.

Num outro dia, ainda mais sucinto, revelou a Sizão o que invariavelmente esperava de quem estivesse tocando com ele:

- Cumplicidade.

Cinco sílabas de música e vida.





Rique Pantoja & Chet Baker- Saci (Brazilian Goblin) - YouTube

https://www.youtube.com/watch?v=qd4810PJhso
19 de out de 2015 - Vídeo enviado por ThePablorecords II
Rique Pantoja- Keyboards Chet Baker- Trumpet Sizão Machado- Bass Bob Wyatt- Drums.





quarta-feira, 6 de julho de 2016

Três do Rio: o tempo voa

   Por FERNANDO LICHTI BARROS


Camas, banheiro, armários, geladeira, sala de estar, escritório, alta quilometragem e muita história tem aquele ônibus estacionado no bairro de Interlagos, em São Paulo.

O Scania rodou o Brasil inteiro com seis técnicos e os músicos Miguel Maimone, José Américo Sestini e Clóvis Suete, os Três do Rio – todos, aliás, paulistas. Eles haviam passado quatro anos no exterior como integrantes do octeto Samba Blue. Após a dissolução do grupo, em 1964, formaram o trio. Estavam na Suiça, e por lá ficaram.

Depois de atuar em 27 em países da Europa e Oriente Médio, voltaram a São Paulo em 1968. A partir de então, Miguel, Sestini e Clovis cumpriram gigantesca agenda de bailes. Num deles dançava um publicitário. Aproximou-se do palco e propôs: que tal fazer teste para um comercial de televisão?

Eles toparam. Dias depois – era o começo da década de 90 -, foram à Rua Bocaina, em Perdizes. Ficava lá o Nosso Estúdio, de Walter Santos e Teresa Souza, criadores de trilhas para filmes publicitários e compositores de Amanhã e Vem balançar, entre outras maravilhas bossa-novistas. 

Não houve teste. Miguel, Sestini e Clóvis começaram imediatamente a fazer a primeira de uma série de treze gravações para uma campanha do Banco Bamerindus. 

Caracterizados de acordo com o gênero interpretado – do bolero ao xote e à tarantela -, os Três do Rio, após bailes às centenas e oito LPs, só viraram celebridades, daquelas reconhecidas nas ruas, ao cantar a fugacidade, a força do tempo, que passa e com ele tudo leva. Inclusive os bancos.


  
  
  
    
   


terça-feira, 5 de julho de 2016

Mazinho: aquele solo no LP de Hermeto



Por FERNANDO LICHTI BARROS 

Hermeto Pascoal gravou em 1970 com Miles Davis e Airto Moreira nos Estados Unidos e, de volta a São Paulo, retomou à rotina. Trabalhava no restaurante Stardust, no Largo do Arouche. Apareceu por lá o percussionista Anunciação, acompanhado por um rapaz de poucas palavras. 

Era Mazinho, de 22 anos, saxofonista desde que, na infância, juntou-se à trupe do Circo Rosário para tocar com o pai e dez irmãos.

Pela primeira vez Hermeto protagonizaria shows anunciados nas fachadas de auditórios em São Paulo, Rio, Curitiba e outras cidades. No Stardust, a boa conversa com Mazinho resultou numa agenda de ensaios marcados para um grupo do qual, além três três ali reunidos, fariam parte Bola e Hamleto (saxes e flautas), Alberto (contrabaixo) e Nenê (bateria e piano).

Em 1973, já então feitas muitas apresentações,a turma entrou no estúdio Eldorado para registrar A música livre de Hermeto Pascoal, com nome e foto do multi-instrumentista finalmente estampados com destaque na capa de um LP.

Numa terça-feira de janeiro, depois de gravar Carinhoso, os músicos ouviram o resultado. Quase todos aprovaram.

Quero gravar de novo. O improviso não saiu legal. - disse Mazinho.

Sem problema: Rubinho Barsotti, baterista do Zimbo Trio e produtor do disco, marcou nova sessão para o dia seguinte.

A quarta-feira amanheceu ensolarada. De calça jeans, camiseta branca e tênis, Mazinho carregava a tiracolo uma bolsa de couro enfeitada com franjas e, na mão direita, o sax alto. A poucos metros da Estação da Luz, desceu de um ônibus vindo da Água Fria, bairro da zona norte paulistana, onde morava.

Caminhou pelas ruas do Centro até chegar ao estúdio, perto da esquina das avenidas São Luiz e Consolação. Quando começou a tocar, aos 2m56 de gravação, veio o solo. 

Mazinho não pensava; apenas se deixava levar por um mistério qualquer que o levaria a matutar se naquele momento quem estava ali era mesmo ele, Waldemar Antonio Justino, nascido em agosto de 1951, na cidadezinha de Fernando Prestes, interior de São Paulo.

Era, sim.

A música livre de Hermeto Pascoal - 02 Carinhoso - YouTube

https://www.youtube.com/watch?v=Ap8MYsCUYpc