quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Quando Guarnieri chegou aos 70



                       Por FERNANDO LICHTI BARROS(*)

 Aos sete anos mergulhou no universo da musica. Da primeira composição, “Sonho de um artista”, aos 11 anos, à mais recente, "Quinta sinfonia para orquestra e chorus”, ainda em fase acabamento, a vida do maestro Camargo Guarnieiri foi de constante dedicação. E assim deverá continuar:

- Sempre digo que só vou parar quando morrer -  diz ele, de camisa branca e calça azul, sentado numa poltrona em seu estúdio.

- A realização do desejo de um artista vai muito além daquilo que na verdade ele pode realizar. Quando a gente chega no momento em que as coisas começam a ficar claras é porque já está no fim. O sujeito já está começando a arrumar as malinhas para a viagem eterna – sorri o maestro,

Ele está falando sobre o objetivo de cada artista, de uma busca incessável. “Das 60 obras que já escrevi, aquilo ainda não representa o que eu gostaria de deixar ao meu povo, uma mensagem de amor e de paz. Infelizmente há muito  ódio na face da terra. Seria mais fácil se todos optassem pelo amor para conseguir a felicidade”

Ao completar 50 anos, declarou: “Um artista, para criar, precisa ser livre como a andorinha”. Hoje, 20 anos depois, ele reforça: “Só com a liberdade o artista pode produzir uma arte verdadeira, uma arte que seja a sua mais íntima expressão. Esse conceito da andorinha tá valendo, não é?”

SITUAÇÂO PRECARIA

Há alguns meses, em Porto Alegre, debatendo sobre a situação do músico brasileiro, surpreendeu a todos citando duas razões para explicar as atuais dificuldades por que passa a categoria:

- Em primeiro lugar, porque 90% dos músicos no Brasil detestam música, e depois porque 95% não sabem música.

E há outras razões, ele ressalta agora: “A situação dos músicos no Brasil é precaríssima. Quando o individuo não ganha o mínimo para a sua subsistência e da sua família, ele não pode produzir. É por isso que eles tocam em dois ou três lugares, pra somar tudo aquilo e conseguir o ordenado que dá pra comer o pão.

O maestro continua apontando falhas. Por exemplo: “No Brasil há a pianolatria, só se toca piano, os outros instrumentos não são estudados. A profissão de músico está muito por baixo, inclusive, porque os estudos são muito malfeitos”. Sua sua receita para ser um bom músico é tão breve quanto clara:

- Para ser bom musico tem que ter talento e estudar. Estudar muito – diz Guarnieri, para quem o compositor precisa ser dotado sobretudo de intuição.

Os músicos da orquestra que ele dirige – a Sinfônica da USP – estão entre os mais bem pagos do País: os salários vão de 9.800 a 15.400 cruzeiros. É o mínimo necessário exigido para o bom rendimento de um trabalho que o apaixona.

Há ainda outro fato que intranquiliza o maestro: a constatação de que a pior música importada, aqui, é sempre mais divulgada do que qualquer composição brasileira. Guarnieri com a palavra:

- O rádio toca 90% de musica estrangeira. Isso deforma, é uma coisa horrorosa. Você sabe que o veneno em dose cavalar mata o sujeito, não é? O que está acontecendo é isso. Você examina essas músicas americanas e vê que é tudo igual: rep-rep, rep-rep, rep-rep...

ALIMENTO DO ESPIRITO

“Criar um clube de futebol é muito fácil, mas criar uma orquestra...” Antes que as reticencias se prolonguem, o maestro acrescenta: “O esporte é necessário, mas a cultura também. Se um alimenta o corpo, o outro alimenta o espirito.

Para continuar em defesa da cultura, diz, “a única coisa que eu desejo é que eu tenha paz e saúde para trabalhar. Em toda a minha vida, o que tem me valido é uma palavra de duas letras: fé”

Camargo Guarnieri demonstra ter bastante convicção no que diz. Já há muito tempo, por exemplo, ele vem opinando a respeito da musica de vanguarda:

- Dizem que sou contra a música de vanguarda. Eu não sou contra a vanguarda, mas contra os maus músicos, aqueles de última hora, sabotadores, que vivem enganando a ingenuidade do povo.

- Ser compositor, hoje é muito difícil. Compositor é aquele que diz uma mensagem que ninguém disse. Entre parênteses: é preciso ter originalidade, personalidade, quer dizer, é a marca do sujeito, não é?

- Se é verdade que o artista é produto do meio em que vive, ele recebe influencia de toda parte, até do que come, do que bebe. Há uma função biológica e uma espiritual. O que eu vou dizer não é vaidade: todo mundo que me conhece diz que a minha musica é muito pessoal.

ESCONDENDO A TRISTEZA

De um modo geral, musica, para Guarnieiri, é uma atividade de significado sagrado. “Para mim, é religião”. A que ele faz, chama de contemporânea. E se, por acaso, alguém se referir à suposta impopularidade da musica erudita, o maestro reagirá assim:

- Ah, isso é besteira. Musica é uma arte que só exige audição. Para gostar, tem que ouvir. É uma arte do tempo: só existe enquanto é tocada.

Tocando, lecionando, compondo, sempre estudando, ele chega aos 70 anos. “Você pode dizer que agora, aos 70, eu olho para trás e me sinto profundamente feliz por ver que não tenho traído o meu desejo de um ser um artista nacional, cuja mensagem é a alma do meu povo”

Esse artista nacional olha tranquilo em direção a uma prateleira do seu velho estúdio, cheia de livros, discos e partituras. E confidencia.

- Eu sou um homem triste. Acho que 70% da minha obra traz dentro de si essa tristeza. Eu vivo a vida inteira tentando enganar; as pessoas que me conhecem pensam que eu sou muito alegre, mas, como eu vivo enganando, ninguém sabe que eu sou triste.

Camargo Guarnieri, septuagenário.

(*) Texto publicado por Fernando Lichti Barros em 1/2/1977, no Diário da Noite, e em 6/2/1977, no Diário de S. Paulo