domingo, 26 de julho de 2020

Leo Canhoto e o sangue do dragão




Por FERNANDO LICHTI BARROS

Leo Canhoto vai se apresentar à noite no Circo Americano Pipoquinha.

Ele dirige um Galaxye bordô rumo a Registro, no Vale do Ribeira. Robertinho, seu parceiro, desliza pela Regis Bittencourt em outro carrão, ao lado de Casquinha, o faz-tudo da dupla. 

É uma quinta-feira abafada, março de 1977. Leo vai lembrando trechos da infância e parte da juventude, vividas entre Inhumas, cidade do interior de São Paulo, e as paranaenses Sertanópolis e Cafeara.

No tempo em que o Paraná  “era um sertão só”, ele ainda atendia pelo nome de batismo, Leonildo Sachi, e pelo rádio ouvia canções de Raul Torres e Florêncio, de Luizinho e Limeira. Passava o dia na roça, mas era recorrente a ideia de ir embora. Não era justo trabalhar, trabalhar e não ter dinheiro para comprar um sapato. Então, resolveu: "Vou sumir”. Despediu-se dos pais e foi para Londrina. Lá começou a cantar.

Em 1969, em Goiânia, conheceu José Simão Alves, um ex-tratorista de Buriti Alegre. O rapaz era bom de gogó, saia-se bem na segunda voz e passou a se chamar Robertinho. Nasceu a dupla.

No ano seguinte, cansados da imagem estereotipada dos cantores que admiravam, Leo Canhoto e Robertinho trocaram o cabelo aparado, a camisa xadrez e o chapéu de palha por botas cromadas, frondosa cabeleira, anelões e colares, arremedos da já então extinta Jovem Guarda. E mais: nas gravações, guitarra, órgão e bateria rompiam com a sonoridade tradicionalmente adotada pela música caipira.

 “Estamos acompanhando a evolução geral”, diz Canhoto ao chegar a Registro. O alto-falante do circo berra:

- Não percam! Leo Canhoto e Roberrrrrtinho, os hippies da música sertaneja!

Uma placa anuncia o espetáculo, que além dos maiores sucessos da dupla terá a encenação de "O Sangue do Dragão Vermelho", um drama “fantástico, violento, selvagem, espantoso, terrível e engraçado”.

Recepcionados por Pinduquinha, o dono do circo, somos convidados a jantar. Enquanto se providencia a comida – arroz, feijão, bife acebolado e salada de alface -, Canhoto, com uma sede profunda, emborca sucessivas doses de cachaça. Daqui a pouco vai começar o espetáculo.

Às 21h30, ele e Robertinho entram em cena. Para uma plateia lotada, autoridades presentes, eles destilam o repertório sob aplausos entusiasmados. Com “Eu e a Dinha”, levam o público ao delírio:

Eu estou chorando pela Dinha, eu estou sofrendo pela Dinha, eu estou morrendo pela Dinha, eu estou soluçando pela Dinha.

Vem, finalmente, “O sangue do dragão vermelho”. O cenário enxuto, composto por mesa e garrafas, sugere funcionar ali um bar administrado por Casquinha, o faz-tudo.

Os cantores agora são caubóis, são mocinho e bandido que não demoram a partir para a troca de bordoadas e tiros de espoleta na disputa entre o bem e o mal. Na cena mais tensa, Canhoto, o xerife, volteia aos gritos um machado acima da cabeça. Gestos largos para uma interpretação inflamada. 

Protocolarmente acomodados na primeira fila, a poucos metros da lâmina empunhada pelo ator, prefeito e primeira-dama acompanham o enredo.

Não foi desta vez que o Executivo local se tornou acéfalo.
  
  










4 comentários:

  1. Que delícia de crônica, Fernando. Isso é Brasil!

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  2. Vc tem que fazer mais um livro, agora com essas crônicas. Obrigado por compartilhar.

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  3. "...tiros de espoleta na disputa entre o bem e o mal".
    delicioso de se ler.
    e salve Leo Canhoto & Robertinho !
    um belo resgate. abrçs

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