Por FERNANDO LICHTI BARROS
Ilustração: Caco Bressane |
No homem que
chega ao trabalho vestindo um blazer elegante parece refletir-se, neste começo
da década de 1960, a modernidade há tempos prometida ao país. Urbanização, novos
padrões de comportamento e estética, tudo repousa na figura dele, o pianista e
cantor que estaciona em frente ao nº 118 da Praça Roosevelt.
Ali fica o
Farney´s. Na vizinhança, cercando a igreja da Consolação, funcionam outras
casas onde há bons serviços de bar e restaurante, com pista de dança, contrabaixo,
bateria, piano, sopros, vozes. Música, muita música, ao vivo. É o que vai fazer
Dick Farney, aquele que acaba de chegar ao nº 118. Dono de alto prestígio, tem vários
discos gravados e carreira internacional.
Começa o
show: números de jazz, balada, samba-canção, bossa nova, Tenderly, Marina, Copacabana, Tereza da Praia,
amores abraçados por um timbre aveludado. Mas não cabe só a Dick a missão de celebrar
esses rituais dignos das graças de Santa Cecília, a padroeira dos músicos.
Desde a
década anterior, acordes e solos inspirados pairam sobre a redondeza. Em 57, aqui
mesmo, na Roosevelt, perto da Rua da Consolação, a Baiúca passou a ser
invariavelmente associada a trilhas sonoras consistentes. Não tinha como dar
errado: já na inauguração estavam a postos o pianista Chiquinho de Moraes e o
baixista Azeitona. São exemplos de artistas capazes de dar brilho à meia-luz
das boates e, embora raramente destacados nas fichas técnicas, de participar da
criação de faixas destinadas a se tornar clássicos da discografia.
Depois de Chiquinho,
numerosos craques no teclado passam pela Baiúca. Um deles: Walter Wanderley. Outros: Luiz Melo, Moacyr Peixoto, Fred
Feld, Gogô, Pedrinho Mattar, Laércio de Freitas, Cesar Mariano, Pachá, Paulinho
Preto, Plinio Metropolo, todos comprometidos com a arte sem, no entanto, jurar
fidelidade ao contratante.
É que a
noite ferve no Centro, pontilhada por boates que se espalham às dezenas no perímetro
delimitado pelas avenidas Nove de Julho, Duque de Caxias e adjacências. Sobram
propostas de trabalho aos músicos. Eles podem trocar de endereço a qualquer
momento. Só é obrigatório volta e meia dar as caras na Roosevelt, o lugar
perfeito para as canjas, para assistir aos shows dos colegas ou bater papo no
balcão do bar Baiuquinha, pegado à Baiúca.
Ao público
da praça se oferecem garrafas de uísque com o nome do comprador escrito no
rótulo; risotos e filés nos cardápios; ambientes decorados e aconchegantes. Mas
é a música, essa pantera, que dá à noite ares cosmopolitas. Seduz, flui, atravessa
o descampado onde ficam parados os automóveis, atinge o outro lado da praça. Ali,
na pequena Bon Soir, vira samba numa temporada de Noite Ilustrada ou harmonia bossanovista
no violão de Geraldo Cunha.
Ilustração: Caco Bressane |
Bem perto, a
Chicote desfia uma programação tentadora. Começa com Robledo, que comanda um
dos mais solicitados conjuntos da cidade. Prestes a sair em turnê – Portugal o
espera -, ele pede a Luiz Loy para substituí-lo ao piano. Primeiro Loy, acordeonista, sente um frio na espinha;
depois se encoraja a enfrentar a empreitada. Desvenda segredos do instrumento
durante o expediente, e tem como parceiro de palco o saxofonista J.T.
Meirelles, que logo, logo irá às paradas de sucesso à frente do Copa 5 com Chove chuva e Mas que nada, cantadas por Jorge Ben.
É sortido o
menu da Chicote. Você pode um dia apreciar os baiões e xotes irresistíveis de
Venâncio e Corumba, na semana seguinte as requintadas melodias de Tito Madi e ainda
dançar ao som do grupo liderado por Bolão, profissional versátil e por isso mesmo
muito requisitado pelos estúdios. Qual dos casais que deslizam na pista não
ouviu o seu solo de sax em Estúpido
Cupido, gravada por Cely Campello
em 59?
Os discos, o
rádio e a televisão contemplam gêneros diversos – boleros derramados, rocks
prenhes de candura, mambos sacolejantes, destemidas experimentações resultantes
do recente flerte do samba com o jazz. Sem que a canção perca a majestade, a música
instrumental brasileira ganha espaço e reconhecimento. Está em alta, sai em
LPs, amanhece em jams, chama a
atenção de estrelas que se apresentam em São Paulo, como Dizzy Gillespie.
É difícil
resistir ao balanço, à evidente disposição de ousar. E, por falar nisso, o que
acontece no Stardust, beirando a Rua Augusta? Geralmente, nada fora do previsto:
um bem-comportado fundo musical. Mas quando o dono do restaurante se ausenta a
surpresa põe a rotina abaixo. Às vezes com a ajuda dos pés e cotovelos, Coalhada,
o pianista, estilhaça qualquer vestígio de ortodoxia.
Ele domina
outros instrumentos com facilidade. Foi sanfoneiro na Rádio Jornal do Comércio,
em Recife, e em São Paulo, antes de ser contratado pelo Stardust, permaneceu
impassível acompanhando ao baixo acústico um repertório modorrento numa boate
da Rua Araújo.
Resista, Coalhada. Daqui a pouco você fará
parte do Sambrasa Trio, do Quarteto Novo, e em 1973 terá seu nome impresso na
capa de um LP: A música livre de Hermeto
Paschoal.
---------------------------------------------------------------
Da série Música no Ar: Um passeio pelo Centro na década de 1960, de Fernando Lichti Barros, publicada pelo Sesc 24 de Maio.
https://open.spotify.com/playlist/6AQVniOj3XkG6kZ1zv0oB9
Nenhum comentário:
Postar um comentário