Por FERNANDO LICHTI BARROS
Ilustração: Caco Bressane |
Estão perdoados os que buscam a
Rua Nestor Pestana apenas para se refestelar com os capeletes, raviólis e
escalopes do restaurante Gigetto.
Se soubessem o que ocorre no
entorno, esses aprendizes de boêmios acrescentariam ao roteiro a degustação de
biscoitos finos. Teriam ido à vizinha Praça Roosevelt para ouvir, na Chicote, a
voz de Dalva de Oliveira; no Murada’s, da Martins Fontes, o piano de Edmundo
Villani-Cortes; na Nove de Julho, o trio de Manfredo Fest no bar do Hotel
Cambridge.
Mas se achassem mais cômodo ater-se
à Nestor Pestana, os não iniciados seriam da mesma forma agraciados pelas
delícias, pelos mistérios da madrugada.
Um súbito estado de encantamento produzido
por bemóis e sustenidos talvez os conduzisse, a poucos passos do restaurante, ao
Moacyr’s, o bar administrado por Moacyr Peixoto, irmão de Cauby. É um sujeito boa-praça,
músico habilidoso, mas gerenciar o negócio, dizem, não é exatamente o forte dele.
Bordados da criação pianística, aplicados ao jazz, o entusiasmam bem mais do
que compras, contabilidade e demais tarefas administrativas. Então, corram:
será efêmera a existência da casa.
Não desistam caso o Moacyr’s tenha
fechado as portas. Um outro espetáculo se descortina, quase em frente ao
Gigetto. Impossível ignorá-lo: mede 48 metros de largura por oito de altura, leva
a assinatura de Di Cavalcanti, chama-se Alegoria
das Artes e está permanentemente exposto. Fica no alto da fachada do Teatro
Cultura Artística, onde a música tem lugar de honra.
Erudita ou popular, chame-a como
quiser. Acima de vãs filosofias, ela comparece ao teatro desde a cerimônia de
inauguração, em 1950, com Villa-Lobos, Camargo Guarnieri e a Sinfônica de São
Paulo. Foi o início de uma sucessão de concertos memoráveis, de arrebatamentos
iguais ao provocado, seis anos depois, pelo saxofonista Casé quando improvisou em
Risque, de Ary Barroso, durante o 1º
Festival de Jazz de São Paulo. E continua presente, a musa, nessa década de 60.
No Cultura Artística agora
funciona a TV Excelsior. Locatária do teatro, a emissora se escancara para a
música. Estrelas da importância de Elizeth Cardoso, Sylvia Telles, Alaíde Costa
e Odete Lara brilham na programação. Desfilam compositores do porte de Dorival
Caymmi, Ataulfo Alves e Lamartine Babo; cantores consagrados (Lucio Alves, Cyro
Monteiro e Nelson Gonçalves, por exemplo) e os instrumentistas extraordinários
das orquestras de Simonetti e Sylvio Mazzucca.
E que movimentação é aquela na
porta? É Ray Charles tentando entrar, escoltado por homens da Guarda Civil e da
Força Pública. Vai fazer show acompanhado por orquestra e coral. Outras
formações, menores mas não menos charmosas, participam de programas comandados
por Luiz Vieira, Moacyr Franco e Bibi Ferreira. Num deles, João Gilberto,
reverencioso, com a fala mansa, derrete-se diante de Orlando Silva.
No final dos anos 50, o mesmo João
andou aparecendo no Cave Bar. Deu canjas substanciais. Canções de Geraldo
Pereira, de Antonio Carlos Jobim, um jeito de tocar e cantar que é só dele, e isso
é muito natural.
Ilustração: Caco Bressane |
Respire. Coisas assim não raro
sucedem na Cave frente ao seu público diversificado, gente da televisão,
gente endinheirada ou nem tanto, jornalistas, poetas, seresteiros, namorados.
Os motorizados deixam na rua os seus
Simcas, DKWs ou Aero-Willys, sob a vigilância de um garoto que mora em
Guaianazes e, em dias de sorte, atua como extra na TV Excelsior. Às vezes, dependendo
do humor de Gunga Din, o menino (Romeu é o nome dele) consegue dar uma espiada
lá dentro. Vê mesas pequenas, fumaça de cigarro, turmas em conversas animadas.
Eis que, não mais que de repente,
Vinicius de Moraes dirige-se ao microfone e canta. O pianista ouve uma vez. Na
segunda, estende um tapete de belos acordes e acompanha Formosa, um samba até então inédito em São Paulo.
Quer pistas sobre o pianista? É
carioca. No Rio, tocou na Cantina do César, no bar do Hotel Plazza, gravou
discos em 78 rotações. Veio para São Paulo e por aqui ficou. Gosta de Cole
Porter e Gershwin, gosta do trabalho noturno. Não guarda dinheiro. Se a dureza
aperta, ele dá aula ou ganha algum fazendo demonstração de partitura em loja. Modéstia
desmedida. Nunca foi visto gabando-se de, na onda do vai e vem, ter-se
antecipado à bossa nova ao compor uma canção em que faz o elogio do
despojamento.
Johnny Alf é um rapaz de bem.
--------------------------------------------------------------
Da série Música no Ar: Um passeio pelo Centro na década de 1960, de Fernando Lichti Barros, publicada pelo Sesc 24 de Maio.
Nenhum comentário:
Postar um comentário