quarta-feira, 19 de abril de 2017

Um beijo no Edgar

Por FERNANDO LICHTI BARROS
                                                                Foto: MILTON MICHIDA

O baterista Edgar Teixeira contava devagar e saborosamente as lembranças da viagem feita ao Iraque. Em 1953, sem contrato, ele rumou a Bagdá com o quinteto do acordeonista Rudy Wharton para uma temporada de shows numa boate. 

Os detalhes iam aflorando: a travessia até Genova no cargueiro Luiz Lumière, a chegada a Roma com direito a jantar no restaurante Alfredo, o embarque rumo a Nápoles, depois a Beirute, e as mais de 40 horas chacoalhando num ônibus até Bagdá.

Em outubro de 2005, na casa onde morava, em São Paulo, Edgard ia puxando pela memória. Desfiava minúcias sobre a aventura vivida 52 anos antes - as baquetas compradas na Itália, o repertório que promovia o encontro de Noel Rosa com Stan Keaton, o uniforme de calça preta e camisa estampada vestido pelos músicos, o indefectível carneiro cozido servido no jantar.

Depois do Iraque, ele parou na Europa. De lá, retornou com o inovador Modern Tropical Quintet, casado com a holandesa Sara Chrétien, cantora do grupo, que tinha ainda os brasileiros Plinio Metropolo e os irmãos Wilson e Waldemar Ribeiro.

Edgar morreu não muito tempo depois desse nosso encontro. Naquela tarde de outono, enquanto o fotógrafo Milton Michida e eu ouvíamos o relato do músico, entrou na sala um dos filhos dele, o baterista Cuca Teixeira, irmão de Wilson, saxofonista. Saia para o teatro onde iria tocar com a cantora Maria Rita.

Na despedida, beijou o pai. E Michida, dono de olhar generoso e gestos precisos, fez o registro.


Foto: MILTON MICHIDA




Modern Tropical Quintet - Suavecito - YouTube

https://www.youtube.com/watch?v=jX3yYJUx83k


segunda-feira, 27 de março de 2017

Johnny Alf, a celebração da modéstia

Por FERNANDO LICHTI BARROS


A missa de sétimo dia da morte de Johnny Alf teve o jeito dos oitenta anos de vida de Johnny Alf. 

Março de 2010. Enquanto no começo da noite a cidade ruge lá fora, no interior da igreja da Consolação, em São Paulo, um ritual modesto celebrava a partida do pianista, cantor e compositor. 

Missa parecida com ele: tranquila. Nenhum estardalhaço, nenhuma presença daquelas que costumam parar o trânsito, fazer espocar flashes, levar tietes ao delírio. Pouca nota, como diriam os colegas ali presentes. 

Havia partido o "Músico Simples" poeticamente retratado por Gilberto Gil na canção que Johnny gravou no LP "Nós", em 1974. O mesmo Johnny que na década de 50 impulsionou a música brasileira com "Rapaz de Bem" e, abraçado ao desprendimento, seguiu em frente  apresentando-se em boates, em bares, em pequenos shows. Ele gostava da noite. 

Autor, entre tantas outras belezas, de "Eu e a brisa", "Ilusão à toda" e "Céu e mar", Johnny morreu sem grana. Durante a missa na Consolação, o padre falou sobre injustiças cometidas por um mercado apenas voraz. 

Diante do altar, um rapaz de longa cabeleira rasta abriu os braços em cruz, rezou o Pai Nosso e foi embora, em passos lentos e silenciosos.

                                

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sexta-feira, 17 de março de 2017

Mestre Gabriel

Foto: Thiago Beatriz

Por FERNANDO LICHTI BARROS

Gabriel Bahlis escapou de doença, de acidente de automóvel, de garrafas que voavam durante cenas de pancadaria em boate e de ovos atirados num salão de baile enquanto tocava inadvertidamente o Hino do Corinthians diante de uma furibunda plateia de palmeirenses.

Por 28 anos trabalhou na Jazz Sinfônica, até, aos 84, ser desligado da orquestra. Não lhe foi perdoado o fato de ter envelhecido. Pobres moços.

Desde 1940 a música faz parte da vida de Gabriel. A formosa tia Marina, ex-miss Porto Alegre, tinha um piano na sala de casa. Ele tirou dali as primeiras notas. Depois tentou o violino, trocado pelo pandeiro ao integrar-se ao regional da Rádio Farroupilha. Foi o contrabaixo, porém, o instrumente que abraçou para não mais largar.


Em 1952 já se apresentava com o quinteto de Breno Sauer no Castelo Rosa, a tal boate das garrafas aladas. Em 1958, após uma temporada em Curitiba, desembarcou em São Paulo com o conjunto de Sauer, contratado pela boate La Vie en Rose. Tornou-se uma referência do contrabaixo brasileiro.

Walter Wanderley, Os Cincopados, Waldir Azevedo, Frank Sinatra, Herbie Mann, Cesar Mariano, Irmãs Galvão, Dick Farney, Sylvio Mazzuca, Dick Farney, Milionário e José Rico, Alceu Valença, Milton Nascimento, Gal Costa, Ednardo, Mazzaropi, Chacrinha  – vai longe a lista de artistas de diferentes estilos que tiveram a companhia de Gabriel em shows e gravações.

Não guardou registros da sua trajetória - nenhum recorte de jornal, nenhum LP, nem mesmo as medalhas conquistadas na juventude em campeonatos de natação. Só o que está preservado é o sotaque gaúcho.

- O que interessa, guri, é o teu interior, é fazer o bem pra todo mundo, é estudar, tocar. Anel, brilhante, automóvel... Quando se envelhece, nada disso interessa.


Gabriel, um mestre.



Búzios Bossa Blog Músicos Heraldo do Monte (guitarra) Hector Costita (sax) Buda (trumpete) Arrundinha ...

Breno Sauer - Viva O Samba - 1959 - Full Album - YouTube

https://www.youtube.com/watch?v=Rl0JdU6EwcY

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Mujica de muitos carnavais


Por FERNANDO LICHTI BARROS
     
À frente de um quarteto, o trompetista Mujica destrincha por duas horas um repertório de marchas, frevos e sambas, seguido na calçada da Avenida Brigadeiro Luís Antônio por alunos de uma escola infantil.

Concluído o trabalho, embarca no metrô rumo a Itaquera, e de lá segue para casa, em São Miguel Paulista. No Carnaval, vai garantir a trilha sonora do Bloco Bastardo em desfile pelo bairro de Pinheiros. 

 Nascido na Bahia em 1942, começou na infância a tocar em bailes. Profissionalizou-se, saiu por aí e parou em São Paulo.Tempos difíceis. 

No começo da década de 70, policiais o cercaram na Praça da República, de onde pretendia chegar ao local de trabalho – a boate Michel, na Boca do Luxo.

Para se identificar, apresentou a carteira da Ordem dos Músicos. Não foi uma boa ideia. Ao ser jogado num camburão, soube que, para evitar constrangimentos como aquele, de tão grosso calibre, era preciso ter um outro documento, expedido pelo Departamento de Censura, na Polícia Federal. Coisas da ditadura.

O trompetista tratou de cumprir a exigência. Apresentou-se com a papelada: Dermival Souza de Oliveira, nascido na Chapada Diamantina, município de Jacobina etc e tal. Faltava o nome artístico.

-  É Mujica - ele disse, lembrando-se da sugestão dada pelo cantor Eduardo Araújo de adotar um apelido que, mesmo vagamente, o associasse a Mogi das Cruzes, onde então morava. 

Nas orquestras de Sylvio Mazzucca e Clovis Ely, no grupo Os Brazões, no Avenida Danças, no Cartola, no Clube Homs, em todos os lugares Dermival passou a ser Mujica.

Mujica, o trompetista que, após a Quarta-Feira de Cinzas, desfeitos sonhos e fantasias do Carnaval, será tudo o que lhe soar como dever de ofício. 

Dê-lhe um sombrero e ele será mariachi.

Mujica, à esquerda

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Mario Edson e os mistérios da noite


Por FERNANDO LICHTI BARROS

Seis vezes por semana, vestindo um terno impecável, Mario Edson senta-se ao piano. O bar é o Baretto, em São Paulo, 2017.

A disposição com que Mario dedilha o Steinway levou, uma vez, Chico Buarque, a perguntar “De onde você tira essa energia?” 

 - Do sereno - respondeu o pianista, já então bem passado dos 70.

Cinquenta e  cinco anos de profissão lhe deram, além de vigor, fina sensibilidade. Ele é capaz de fazer a noitada evoluir de acordo com o clima, o humor, o estado de espírito da plateia.

São 23h30. Mário, dono de um repertório quilométrico, toca Dindi. Daí para Summertime é um pulo. Aplausos entre conversas animadas, e a temperatura sobe ainda mais. Por alguns compassos, Mario deixa o piano para tocar tamborim e apito em sambas de andamento acelerado. Já tem gente agitando o corpo em coreografia moldada ao ambiente projetado para acomodar 60 pessoas.

De repente, mudam os grupos ocupantes de quatro ou cinco mesas. Outra vez a música se acalma – pode ser, Tu mi delírio, bolero matador do cubano Cesar Portillo de la Luz interpretado por Anna Setton, uma das vozes do Baretto. 

Outros músicos experientes revezam-se noite adentro - o baterista Mutinho, autor de canções compostas com Toquinho e Vinícius de Moraes; o pianista Moacyr Zwarg, representante de uma família de grandes músicos; o saxofonista Faninho, antigo parceiro de Mario Edson, e Wilson Gomes, o contrabaixista que se vestia de Drácula para acompanhar Elis em Falso BrilhanteNada fracos, os rapazes. Já foram ouvidos pelo pessoal do U-2, por John Pizzarelli e Mick Jagger. 

Há quatro ou cinco anos, Sharon Stone não resistiu ao balanço da bossa: levantou-se da poltrona e foi fazer selfie com Mario Edson.

São 2h30. Quando tudo indica que a última conta será fechada, chega ao Baretto um grupo entusiasmado. É prontamente atendido ao manifestar o desejo de ouvir Piazzolla. Piano, sax, baixo e bateria saem com Balada para um loco. Aplausos. Começa outra rodada de jazz, bossa-nova, bolero, I love Paris, Garota de Ipanema, Contigo en la distancia.

Mario Edson chama de “dosagem” a mistura de gêneros administrada em função do comportamento do público. Do alto da experiência iniciada em 1962, quando foi contratado pelo Can-Can, um inferninho da avenida Nove de Julho, ele segreda: “Tudo cabe na noite”.

Parece simples, mas é bom lembrar: “Ela tem os seus mistérios”.






terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Carlos Alberto, 82


Por FERNANDO LICHTI BARROS

 Não combine nada com Carlos Alberto Alcântara para o período da manhã. 

Desde que, há mais de seis décadas, passou a atravessar noites soprando o saxofone em bailes, depois em boates e gravações, ele não acorda cedo nem se for dia do seu aniversário.

Hoje Carlos Alberto vai sair da cama ali pelas 11. Na cozinha da casa localizada numa rua silenciosa da Parada Inglesa, bairro da zona norte de São Paulo, tomará o café preparado por dona Eleuza. Em seguida, jogará uma partida de damas no tablet e, antes de almoçar, começará a tocar no seu quarto de estudos, entre imagens de Nossa Senhora, Santa Cecília e dos pais, Carlos e Inhá.

Repetirá o ritual à tarde, até a chegada dos filhos e netos. Então, com arroz, picanha, salada de tomate e cerveja uruguaia, virá a comemoração do seu 82º aniversário.

Mineiro de Uberlândia, integrante de uma família que tem música no sangue, a partir da década de 50 ele transitou por praias diversas - as orquestras de Carlos Piper, Luiz Arruda Paes, Sylvio Mazzucca, o iê-iê-iê de Os Wandecos, o samba-jazz dos Cincopados, o “Domingo no Parque” tropicalista e a ousadia perpetrada no LP do Brazilian Octopus e em shows de Hermeto Pascoal.

Mas não pense que Carlos Alberto parou por aí. Em grande forma, faz parte da Jazz Sinfônica, criada em 1989 e agora ameaçada de extinção pelo governo de São Paulo. 

Se de fato tal atrocidade for cometida, o oitentão seguirá em frente, surpreendendo com solos da mais alta elegância na big band de Nelson Ayres e viajando pelo país com a orquestra de Arte Viva, de Amilson Godoy.

Carlos Alberto não é fraco, governador.

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Apresentação de Carlos Alberto de Alcântara em "Noite, Som e Tal", série de shows idealizada e produzida pelo autor do blog para o Sesc Araraquara, em 1º de novembro de 2013:

Noite, Som e Tal - 1 - YouTube

https://www.youtube.com/watch?v=4iylSM1J7x0
25 de dez de 2013 - Vídeo enviado por Fernando Barros
Carlos Alberto de Alcântara - sax tenor Arismar do Espirito Santo - guitarra Carlos Roberto - piano Celso ...



  

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Edmilson Nery e a alegria de viver

Por FERNANDO LICHTI BARROS 

Nada. Não havia mais estudo, palco, ensaio, concerto, aplauso, prestígio, viagens, salário, casa, convivência - não havia mais nada.

Edmilson Nery, um dos mais aclamados clarinetistas brasileiros, pouco se mexia na cama. Ao seu redor ressoavam o uivo da solidão e a sentença de um laudo médico: “Incapacidade de manter qualquer interação social em caráter definitivo”.

Mas um dia, 13 de março de 2013, Edmilson levantou-se do sofá na casa da mãe, dona Yolanda. Caminhou até o banheiro e, devagar, escovou os dentes. 

Era como se estivesse retornando de uma longa ausência, de um sono profundo, sem sonhos bons ou ruins. Era o fim do mergulho no silêncio que sufocou a beleza por ele produzida enquanto foi primeiro clarinetista da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. 


Por 25 anos Edmilson atuou na Osesp - até se defrontrar com o maestro John Neschling, em 2004. Demitiu-se. Quatro anos antes havia iniciado tratamento de distonia, doença neurológica percebida durante um ensaio, quando percebeu paralisado o indicador da mão esquerda.

Fora da orquestra, passou a se dedicar ao ensino. As primeiras manifestações da depressão prenunciaram um roteiro sombrio. Remédios fortes, dois, três maços de cigarro por dia, rotina em escombros, casamento desfeito, real e imaginário por vezes se misturando e, em 2010, a primeira internação. 

Foram cinco em dois anos. Numa delas, quem estava ali já não era o líder de naipe da Osesp, nem um dos fundadores do formidável quinteto Sujeito a Guincho – era, sim, um paciente em lágrimas cantando Over the rainbow com o coral da clínica. 

Na quinta e última hospitalização, fugiu e foi encontrado caído numa calçada, em São Caetano do Sul. Levado para a casa da mãe, limitou-se a vegetar durante seis meses. De estalo, naquele 13 de março, despertou. 

Aos poucos reduziu a medicação, readquiriu ânimo, confiança, vontade de viver. Com um clarinete oferecido pelo irmão, Edilson, trompetista da Banda Sinfônica, voltou a praticar.

Em seguida, outros presentes: o convite – aceito - para dar aula no ateliê do luthier Daniel Tamborim e, algum tempo depois, o reencontro com amigos no aniversário da saxofonista Claudia Montin Franco.    

Na festa, o também saxofonista Mauricio de Souza convidou Edmilson, ainda em fase de dificuldade financeira, para morar na sua casa, no Riacho Grande. Ele foi.

Lugar bonito, próximo à represa Billings, em São Bernardo, bem distante do ateliê de Tamborim, localizado na região da avenida Paulista, em São Paulo.

Às 5h30, ensardinhado na primeira das duas conduções tomadas rumo ao trabalho, respirava feliz o vento que entrava pela janela. Tinha alegria, apoio de familiares, das filhas Nathália e Luciana, de amigos iguais a Mauricio. A vida estava ali para ser celebrada.

Numa segunda-feira, Edmilson assista a um show do Septeto S/A, liderado por Mauricio, no São Cristóvão, um bar da Vila Madalena. Ali conheceu Joelma; hoje são casados.

Ele continua a dar aulas e novamente faz parte do Sujeito a Guincho. Com o quinteto, andou se apresentando pelo Brasil afora. Para fazer um desses concertos, esteve em  Ilhabela. Estavam lá Joelma, a música, os companheiros. Do Atlântico vinha uma brisa. Era um dia de sol.