quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Wilson, o baixista que virou Drácula

Por FERNANDO LICHTI BARROS




A campainha do apartamento estava quebrada. Pelo olho-mágico, Wilson Gomes avistou quem batia à porta - o baterista Nenê e o guitarrista Natan Marques. Os dois pareciam ter pressa.

“Vamos, calce os sapatos”, eles disseram. Não havia tempo para conversa; apenas para uma informação seca: os três iriam ensaiar com Elis Regina.

Wilson apanhou o baixo Snake utilizado na véspera para acompanhar Pery Ribeiro na Catedral do Samba, e da Rua das Palmeiras seguiu com os amigos até a Escola de Dança de São Paulo, na Praça Ramos.

Lá estavam, muito sérios, Elis, Cesar Mariano, o coreógrafo JC Violla e a diretora Miriam Muniz. Feita uma rápida apresentação -“esse aqui é o Wilson” -,  logo teve início o trabalho. Nada de música: ao invés de tocar, todos passaram a fazer alongamentos, sob a orientação de Violla.

O show em preparação levaria o nome de Falso Brilhante, com estreia marcada para o final daquele ano,1975. Quando, enfim, os músicos começaram a tocar canções já gravadas por Elis – e esse foi o teste a que Wilson foi submetido -, ele demonstrou segurança. Conhecia o repertório da cantora. 

Cesar Mariano sorriu, sinal de que o contrabaixista estava admitido.  Então, Miriam Muniz se aproximou e avisou: os músicos seriam também atores,  
     
- Você vai ser o Drácula - ela disse a Wilson.


Não havia nada que vinculasse as atividades noturnas atribuídas ao conde da Transilvânia à trajetória profissional do contrabaixista, iniciada em Fortaleza, sua cidade, em rodas de choro e nos bailes animados pelos conjuntos de Ivanildo e de Roberto Mota.

Mas uma chance como aquela, um presente da vida, não deveria ser desperdiçada. E, de maquiagem e capa preta, surgiu Wilson no palco do Teatro Bandeirantes para fazer parte de um espetáculo comovente, inesquecível.



Gracias A La Vida Elis Regina Composição: Violeta Parra Gracias a la vida, que me ha dado tanto Me dió dos luceros que cuando los abro ...



domingo, 4 de setembro de 2016

Oliveira e os Black Boys: um twist na ditadura

Por FERNANDO LICHTI BARROS


Faltavam cinco dias para o desfile da Semana da Pátria, o primeiro após o golpe de 1964, quando, numa nota de 19 linhas, o  Diário da Noite acusou o quinteto Oliveira e Seus Black Boys de ter tocado o Hino Nacional em ritmo de twist., durante um baile, em Santo André. Um “verdadeiro atentado aos mais comezinhos princípios cívicos”, bradou o jornal.

Foi o começo do enredo.

Dia 10 de setembro, o secretário da Segurança Pública, general Ivanhoé Gonçalves Martins, encaminhou à direção da Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS) um recorte contendo a notícia do Diário da Noite.

A Ordem dos Músicos entrou na dança. Em ofício assinado pelo presidente Wilson Sandoli, intimou a turma de Oliveira a depor em processo “ético profissional”, instaurado para apurar o caso, de antemão considerado pela entidade como “pleno desrespeito à Pátria e às leis em vigor”.

O não comparecimento dos músicos, prosseguia a intimação, levaria a Ordem a recorrer “às autoridades policiais quer civis ou militares”.




A tarefa de fazer a avaliação técnica do episódio coube a dois veteranos profissionais, Antonio Torcheia e Osmar Milani. Depois de ouvir as explicações dos “denunciados” e a execução da “partitura incriminada”, eles saíram em defesa dos colegas. Assinaram, com Sandoli e o consultor jurídico Wilson Santos, parecer de 26 linhas que concluiu: não houve o que noticiara o Diário da Noite.

Tratou-se, segundo eles, de um mal-entendido provocado pelo solista que, “levado pelo entusiasmo”, improvisou durante um compasso. Tudo teria ocorrido “de forma indefinida, capaz de ser alimentada mais pela sugestão que pela realidade”.

Não havia, portanto, “culpabilidade” para enquadrar os músicos “nas penas cominadas no Código de Ética Profissional e da Justiça Militar”. Anexado ao parecer, a OMB encaminhou ao DOPS os nomes e endereços dos músicos de Oliveira com uma foto do conjunto.

     
Tarde demais. Entrou no caso o II Exército. O chefe do Estado Maior, general Durval Campello de Macedo, enviou ofício à Pasta da Segurança, que por sua vez despachou o material para o DOPS.

No documento, o general solicitou “os bons ofícios dessa Secretaria de Estado no sentido de que este QG fosse informado quando à veracidade da ocorrência para as providências decorrentes”.

Um policial foi ouvir o autor do solo. Demercilio Viana, ex-cabo do Exército, bom guitarrista, cheio de balanço, foi ao ponto:

- Não ia macular um patrimônio que eu mesmo ajudei a zelar.

No relatório, o policial concluiu: o conjunto Oliveira e Seus Black Boys apenas citou, no improviso feito por Demercilio, uma música cujos primeiros compassos têm certa semelhança com o Hino Nacional. 

Ficou patenteado o ridículo da patacoada. A música era American Patrol, que na Segunda Guerra a orquestra de Glenn Miller tocava para animar tropas dos Estados Unidos.
-----------------------------

Baseado em trecho do livro "Do calypso ao chá-chá-chá - Músicos em São Paulo na década de 60", de Fernando Lichti Barros, autor deste blog.

Glenn Miller-"American Patrol" · Glenn Miller - Chattanooga Choo Choo - 




https://www.youtube.com/watch?v=aI_PRBusZWg


sexta-feira, 26 de agosto de 2016

O nome dele é Buda


Por FERNANDO LICHTI BARROS

No Mercado da Lapa ninguém sabe quem é o homem alto e corpulento tantas vezes visto por lá comprando azeitonas e tremoços. Aquele mesmo que sempre elogia, com sotaque italianado, o pastel de palmito servido pelo Box 40:

- Orra, isso vale por um almoço.

O nome dele é Dorival Auriani, mas pode chamá-lo de Buda. Trompetista - e, mama mia, que trompetista! Ex-impressor gráfico, ex-lateral direito do Nacional da Barra Funda, ele se tornou músico profissional aos 20 anos, em 1949. Levado pelo irmão, Felpudo, também trompetista, foi integrar a orquestra de Walter Guilherme, na Rádio Cultura. Daí para a frente não parou mais.

Quando a onda era samba-jazz, nos anos 60, lá estava ele com o Sambossa 5, com Os Cincopados e o octeto de Cesar Camargo Mariano.

Seu nome está registrado na contracapa de LPs de Milton Nascimento, Frenéticas e Premeditando o Breque – apenas três exemplos da atividade febril que o levava a fazer quatro, cinco gravações num único dia.

Shows com artistas de renome? Anote alguns: Tony Bennett, Nancy Wilson, Roberto Carlos, Burt Bacharach, Shirley Bassey, Ray Conniff, Johnny Mathis e Four Tops.

Orquestras? Carlos Piper, Dick Farney, Elcio Alvarez, Luiz Arruda Paes, Osmar Milani, Chiquinho de Moraes, Nelson Ayres e, claro, Sylvio Mazzucca. Foram 47 anos de shows, discos e bailes com Mazzucca, uma amizade verdadeira.

Amizade daquelas festejadas, ao término de uma boa apresentação, com macarronada numa cantina do Bixiga. Ou com um presente como o oferecido por Mazzucca a Buda, durante a gravação de um LP da orquestra, em 1985:

- O solo é seu. 

Era uma composição de Mazzucca, Perto de Você. E Buda, uma vez mais, tirou do trompete um som cristalino, bonito, a tradução de um sujeito tão admirável.   

Perto de você - Sylvio Mazzuca- - YouTube

https://www.youtube.com/watch?v=5KZ6RTyhUmE

 ... 

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Bobby de Carlo e o canto da corruíra

Por FERNANDO LICHTI BARROS

O canto de um pássaro faz Roberto voltar no tempo. Ele retrocede quase 60 anos e se enxerga adolescente, despertando com o trinado da corruíra no bairro paulistano do Canindé.

Agora, o bichinho voltou a aparecer por lá. Faz solos melodiosos. E Roberto, de repente, retorna aos 15 anos, à época em que ao cotidiano bucólico acrescentava pitadas de  roquenrol. Era uma novidade vinda dos Estados Unidos, logo reproduzida no Brasil por cantores e conjuntos iguais àqueles de que Roberto participou – The Vampires e The Jet Blacks.

Na esteira da influência norte-americana, levado para a gravadora Odeon por Tony Campelo, Roberto gravou Oh! Eliana em 78 rotações e virou Bobby. Bobby de Carlo.

Cantar era bom, mas tocar era melhor. Tocar violão, guitarra, contrabaixo com o saxofonista Nestico e o pianista Wanderleyzinho, fazer bailes, excursionar de navio para o Amazonas, a Bahia, Argentina e Uruguai com o grupo Bossa News. Tocar jazz, samba-canção, bossa-nova, tudo o que fosse preciso para acompanhar ao baixo acústico, com os dedos protegidos por tiras de esparadrapo, o pianista Mario Edson no bar Estão Voltando as Flores, no subsolo da Galeria Metrópole.

Havia em Bobby, também, a sede de aprender. Era o que o levava ao bairro do Belenzinho, onde morava o instrumentista, cantor e arranjador Zé Bicão. Ou, ainda, à Casa Bevilacqua, no centro da cidade, onde Johnny Alf defendia algum dinheiro escrevendo partituras para impressão e venda.
 Disa: presente de Johnny Alf
- Você tem um bom ouvido - observou certa vez Johnny, antes de oferecer ao rapaz um presente, a canção Disa, de sua autoria, escrita a lápis numa folha de papel.

Foi a musicalidade notada pelo precursor da bossa-nova que proporcionou a Bobby a coragem de tocar de improviso com Dick Farney e Sadao Watanabe, no Clube dos Amigos do Jazz, o Camja. 

Lá mesmo, também por acaso, ele acompanhou ao contrabaixo o pianista Tenório Jr, uma referência do samba-jazz. Tornaram-se amigos.

Enquanto isso, fora dos limites do Camja, a Jovem Guarda desfrutava de imensa aceitação popular. Bobby resolveu surfar naquela onda. Em 1966, assinou contrato com a Rozenblit, fábrica de discos sediada em Recife.

Escrito por Bitão, guitarrista de Os Megatons - grupo que o acompanhou na gravação-, Tijolinho, um iê-iê-iê prenhe de candura, fez dele novamente um cantor. Um canário, como já diziam os músicos nas tantas noites que Bobby atravessou em bailes e boates.

Canário, corruíra. Tem passarinho voltando ao Canindé.                                                    


TIJOLINHO BOBBY DE CARLO - YouTube


https://www.youtube.com/watch?v=vGH387-1e9k









  

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

No balanço do jequibau

Por FERNANDO LICHTI BARROS

Um diretor da gravadora Chantecler propôs ao pianista Mario Albanese que apresentasse uma alternativa à bossa-nova. Não era pouca coisa a ser pensada em 1963, ano da gravação de Garota de Ipanema, feita por Pery Ribeiro. 

Formado no Conservatório Dramático Musical de São Paulo, Mario saiu a refletir sobre música, sobre a vida, filosofia, cultura, dualidade, yinyang, o pensamento voando até à China, às cinco virtudes de que falava Confúcio, à escala pentatônica, a uma cantiga de roda argentina, à polirritmia cantada por escravos em fuga, aos cinco dedos de cada mão.
Dois anos depois, na TV Record, encontrou-se com o maestro Cyro Pereira. Haviam sido apresentados na década de 50 pelo violonista Garoto, na Rua Quintino Bocaiúva.


- O que cê tá fazendo? - perguntou Cyro.

Após a resposta dada por Mario - “umas pesquisas sobre ritmos” –, eles passaram a ter longas conversaram sobre ritmo em cinco tempos, quase uma provocação frente ao descontraído balanço da bossa. 


Pediram ajuda ao baixista Pala e ao baterista Xororó para uma primeira experiência: os dois tocando juntos de um lado de um tapume, do outro Mario ao piano, Cyro no centro regendo os três. Não fluiu, mas a dupla insistiu no trabalho, que resultou no lançamento, em 1965, do compacto simples com Jequibau e Esperando o Sol.

Mario era também o apresentador do programa Improviso, na Rádio Record. Uma tarde apareceu no estúdio um violonista pequeno e sorridente. Era Macumbinha, de 15 anos, dois a mais que a baterista que o acompanhava, Elizabeth Del Grande. Morava em São Miguel Paulista, e ao término do programa aproveitou o carro de Mario para percorrer uma parte do percurso de volta para casa.

O pianista fez com a voz um tonqui-toton-ticticton, e repetiu algumas vezes a onomatopeia. “Você é capaz de fazer isso em dois acordes?”. Claro que sim. Ao tocar na emissora, Macumbinha, talentoso e raçudo, já dera mostra da sua capacidade.

O garoto, com procuração assinada pelo pai, foi morar na casa de Albanese, na Rua Atlântica, Jardim América. Ao lado de outro violonista, Silvio Santisteban, e do baterista Zé Eduardo Nazario, transformou-se em destacado intérprete e divulgador do jequibau em escolas e programas de rádio e televisão. Foi fundamental, aliás, a participação de Zé Eduardo, ao transformar em 10/4 a batida originalmente escrita em cinco tempos.

O novo ritmo já era então anunciado em muros por cartazes lambe-lambe vistos pelo produtor norte-americano Sunny Skylar ao desembarcar em São Paulo

- Você tem mais músicas? - Skylar quis saber.

- Tenho - disse Albanese. 

Não era verdade. O pianista correu ao encontro de Cyro para começar a primeira de uma série de 50 composições, dez das quais, somadas às duas do compacto simples, foram lançadas em Jequibau na Broadway

Ganhou asas, aquele tonqui-toton-ticticton.

Música Jequibau - YouTube

https://www.youtube.com/watch?v=df7HAiq9YdQ



segunda-feira, 25 de julho de 2016

O Harlem de Casé

Por FERNANDO LICHTI BARROS


Foi em benefício da família de Mané Careca, trompetista acometido por um AVC, que o pianista Roberto Farath organizou a Noite de Gala da Música em São José do Rio PretoEra 1972.

José Ferreira Godinho Filho, o Casé, não conhecia Careca, mas logo se prontificou a participar do show no Automóvel Clube, marcado para 22 de novembro, dia de Santa Cecília, padroeira dos músicos.

O saxofonista estava em Rio Preto, interior de São Paulo, para uma temporada de bailes com o conjunto de Renato Perez.

A seu respeito misturavam-se histórias sobre as maravilhas extraídas do sax alto e um comportamento desconcertante – a repulsa à vaidade e seus inúteis serpenteios, a conversa toda mansa roçada por súbitas tiradas filosóficas, o silêncio em repouso num copo de martíni, as horas à toa na praça central em companhia de cães sem dono.

Noite do show. Em cena, músicos arregimentados na região - a cozinha, quatro trombones, cinco saxofones, quatro pistons.

“Ele é um dos maiores do mundo, e é modesto à beça”, diz Farath ao microfone, antes de apresentar Casé, autor do arranjo e do solo que virão.

Um gravador de rolo é acionado e registra Harlem Nocturne, a balada triste que o saxofonista tocará enquanto viver. Até 30 de novembro de 1978, quando seu corpo, coberto por marcas de agressão, for encontrado no chão de um hotel da Boca do Lixo, em São Paulo.

                                           Ouça a gravação AQUI:
                                            
                                                     
                                                 
                                                 
                                            

sexta-feira, 22 de julho de 2016

Uma sanfona contra a merreca

Por FERNANDO LICHTI BARROS

Asa Branca uma, duas, dez, vinte vezes. Pode pedir que Nivaldo toca, não se queixa e nem fica bravo. “Se braveza valesse, Lampião tinha ficado rico”, diz ele.

O baiano de Inhambupe acorda bem cedo em São Mateus, na zona leste de São Paulo, pega a sanfona Hohner preta, vai para o ponto de ônibus e segue ao encontro dos parceiros Zé Vieira e Daniel, cearenses do Cariri.

No Largo da Batata, em São Miguel, Mauá, numa praça qualquer, por volta das dez da manhã eles cobrem a cabeça com chapéu de vaqueiro e se transformam no Trio Beija-Flor Nordestino.

Acompanhada por triângulo e zabumba, a sanfona chora durante cinco ou seis horas, a não ser que uma chuva encurte o espetáculo. Dá-lhe baião, dá-lhe xaxado, samba, vá pedindo que eles atendem. Só não venha com o tal do funk. “Isso é música sem origem”, fala Nivaldo, de 70 anos. 


 Um ano mais moço que o ex-prensista Zé Vieira e três mais velho que o ex-ajudante geral Daniel, seus parceiros, ele trabalhou na construção civil até se aposentar. O salário liberado pelo INSS é tão esquálido, que Nivaldo recorre a um gesto - aperta o indicador contra o polegar da mão direita – para traduzir o valor da merreca.

Mas a sanfona, companheira desde a infância, não lhe falta numa hora dessas. Com Daniel e Zé Vieira, recolhe da caixa de papelão deixada na calçada até R$ 240 por dia. Às vezes a arrecadação aumenta. E, se a sorte estiver mesmo de plantão, pode se aproximar uma boa alma e perguntar:

- Toca uma de Dominguinhos?