sexta-feira, 26 de agosto de 2016

O nome dele é Buda


Por FERNANDO LICHTI BARROS

No Mercado da Lapa ninguém sabe quem é o homem alto e corpulento tantas vezes visto por lá comprando azeitonas e tremoços. Aquele mesmo que sempre elogia, com sotaque italianado, o pastel de palmito servido pelo Box 40:

- Orra, isso vale por um almoço.

O nome dele é Dorival Auriani, mas pode chamá-lo de Buda. Trompetista - e, mama mia, que trompetista! Ex-impressor gráfico, ex-lateral direito do Nacional da Barra Funda, ele se tornou músico profissional aos 20 anos, em 1949. Levado pelo irmão, Felpudo, também trompetista, foi integrar a orquestra de Walter Guilherme, na Rádio Cultura. Daí para a frente não parou mais.

Quando a onda era samba-jazz, nos anos 60, lá estava ele com o Sambossa 5, com Os Cincopados e o octeto de Cesar Camargo Mariano.

Seu nome está registrado na contracapa de LPs de Milton Nascimento, Frenéticas e Premeditando o Breque – apenas três exemplos da atividade febril que o levava a fazer quatro, cinco gravações num único dia.

Shows com artistas de renome? Anote alguns: Tony Bennett, Nancy Wilson, Roberto Carlos, Burt Bacharach, Shirley Bassey, Ray Conniff, Johnny Mathis e Four Tops.

Orquestras? Carlos Piper, Dick Farney, Elcio Alvarez, Luiz Arruda Paes, Osmar Milani, Chiquinho de Moraes, Nelson Ayres e, claro, Sylvio Mazzucca. Foram 47 anos de shows, discos e bailes com Mazzucca, uma amizade verdadeira.

Amizade daquelas festejadas, ao término de uma boa apresentação, com macarronada numa cantina do Bixiga. Ou com um presente como o oferecido por Mazzucca a Buda, durante a gravação de um LP da orquestra, em 1985:

- O solo é seu. 

Era uma composição de Mazzucca, Perto de Você. E Buda, uma vez mais, tirou do trompete um som cristalino, bonito, a tradução de um sujeito tão admirável.   

Perto de você - Sylvio Mazzuca- - YouTube

https://www.youtube.com/watch?v=5KZ6RTyhUmE

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quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Bobby de Carlo e o canto da corruíra

Por FERNANDO LICHTI BARROS

O canto de um pássaro faz Roberto voltar no tempo. Ele retrocede quase 60 anos e se enxerga adolescente, despertando com o trinado da corruíra no bairro paulistano do Canindé.

Agora, o bichinho voltou a aparecer por lá. Faz solos melodiosos. E Roberto, de repente, retorna aos 15 anos, à época em que ao cotidiano bucólico acrescentava pitadas de  roquenrol. Era uma novidade vinda dos Estados Unidos, logo reproduzida no Brasil por cantores e conjuntos iguais àqueles de que Roberto participou – The Vampires e The Jet Blacks.

Na esteira da influência norte-americana, levado para a gravadora Odeon por Tony Campelo, Roberto gravou Oh! Eliana em 78 rotações e virou Bobby. Bobby de Carlo.

Cantar era bom, mas tocar era melhor. Tocar violão, guitarra, contrabaixo com o saxofonista Nestico e o pianista Wanderleyzinho, fazer bailes, excursionar de navio para o Amazonas, a Bahia, Argentina e Uruguai com o grupo Bossa News. Tocar jazz, samba-canção, bossa-nova, tudo o que fosse preciso para acompanhar ao baixo acústico, com os dedos protegidos por tiras de esparadrapo, o pianista Mario Edson no bar Estão Voltando as Flores, no subsolo da Galeria Metrópole.

Havia em Bobby, também, a sede de aprender. Era o que o levava ao bairro do Belenzinho, onde morava o instrumentista, cantor e arranjador Zé Bicão. Ou, ainda, à Casa Bevilacqua, no centro da cidade, onde Johnny Alf defendia algum dinheiro escrevendo partituras para impressão e venda.
 Disa: presente de Johnny Alf
- Você tem um bom ouvido - observou certa vez Johnny, antes de oferecer ao rapaz um presente, a canção Disa, de sua autoria, escrita a lápis numa folha de papel.

Foi a musicalidade notada pelo precursor da bossa-nova que proporcionou a Bobby a coragem de tocar de improviso com Dick Farney e Sadao Watanabe, no Clube dos Amigos do Jazz, o Camja. 

Lá mesmo, também por acaso, ele acompanhou ao contrabaixo o pianista Tenório Jr, uma referência do samba-jazz. Tornaram-se amigos.

Enquanto isso, fora dos limites do Camja, a Jovem Guarda desfrutava de imensa aceitação popular. Bobby resolveu surfar naquela onda. Em 1966, assinou contrato com a Rozenblit, fábrica de discos sediada em Recife.

Escrito por Bitão, guitarrista de Os Megatons - grupo que o acompanhou na gravação-, Tijolinho, um iê-iê-iê prenhe de candura, fez dele novamente um cantor. Um canário, como já diziam os músicos nas tantas noites que Bobby atravessou em bailes e boates.

Canário, corruíra. Tem passarinho voltando ao Canindé.                                                    


TIJOLINHO BOBBY DE CARLO - YouTube


https://www.youtube.com/watch?v=vGH387-1e9k









  

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

No balanço do jequibau

Por FERNANDO LICHTI BARROS

Um diretor da gravadora Chantecler propôs ao pianista Mario Albanese que apresentasse uma alternativa à bossa-nova. Não era pouca coisa a ser pensada em 1963, ano da gravação de Garota de Ipanema, feita por Pery Ribeiro. 

Formado no Conservatório Dramático Musical de São Paulo, Mario saiu a refletir sobre música, sobre a vida, filosofia, cultura, dualidade, yinyang, o pensamento voando até à China, às cinco virtudes de que falava Confúcio, à escala pentatônica, a uma cantiga de roda argentina, à polirritmia cantada por escravos em fuga, aos cinco dedos de cada mão.
Dois anos depois, na TV Record, encontrou-se com o maestro Cyro Pereira. Haviam sido apresentados na década de 50 pelo violonista Garoto, na Rua Quintino Bocaiúva.


- O que cê tá fazendo? - perguntou Cyro.

Após a resposta dada por Mario - “umas pesquisas sobre ritmos” –, eles passaram a ter longas conversaram sobre ritmo em cinco tempos, quase uma provocação frente ao descontraído balanço da bossa. 


Pediram ajuda ao baixista Pala e ao baterista Xororó para uma primeira experiência: os dois tocando juntos de um lado de um tapume, do outro Mario ao piano, Cyro no centro regendo os três. Não fluiu, mas a dupla insistiu no trabalho, que resultou no lançamento, em 1965, do compacto simples com Jequibau e Esperando o Sol.

Mario era também o apresentador do programa Improviso, na Rádio Record. Uma tarde apareceu no estúdio um violonista pequeno e sorridente. Era Macumbinha, de 15 anos, dois a mais que a baterista que o acompanhava, Elizabeth Del Grande. Morava em São Miguel Paulista, e ao término do programa aproveitou o carro de Mario para percorrer uma parte do percurso de volta para casa.

O pianista fez com a voz um tonqui-toton-ticticton, e repetiu algumas vezes a onomatopeia. “Você é capaz de fazer isso em dois acordes?”. Claro que sim. Ao tocar na emissora, Macumbinha, talentoso e raçudo, já dera mostra da sua capacidade.

O garoto, com procuração assinada pelo pai, foi morar na casa de Albanese, na Rua Atlântica, Jardim América. Ao lado de outro violonista, Silvio Santisteban, e do baterista Zé Eduardo Nazario, transformou-se em destacado intérprete e divulgador do jequibau em escolas e programas de rádio e televisão. Foi fundamental, aliás, a participação de Zé Eduardo, ao transformar em 10/4 a batida originalmente escrita em cinco tempos.

O novo ritmo já era então anunciado em muros por cartazes lambe-lambe vistos pelo produtor norte-americano Sunny Skylar ao desembarcar em São Paulo

- Você tem mais músicas? - Skylar quis saber.

- Tenho - disse Albanese. 

Não era verdade. O pianista correu ao encontro de Cyro para começar a primeira de uma série de 50 composições, dez das quais, somadas às duas do compacto simples, foram lançadas em Jequibau na Broadway

Ganhou asas, aquele tonqui-toton-ticticton.

Música Jequibau - YouTube

https://www.youtube.com/watch?v=df7HAiq9YdQ



segunda-feira, 25 de julho de 2016

O Harlem de Casé

Por FERNANDO LICHTI BARROS


Foi em benefício da família de Mané Careca, trompetista acometido por um AVC, que o pianista Roberto Farath organizou a Noite de Gala da Música em São José do Rio PretoEra 1972.

José Ferreira Godinho Filho, o Casé, não conhecia Careca, mas logo se prontificou a participar do show no Automóvel Clube, marcado para 22 de novembro, dia de Santa Cecília, padroeira dos músicos.

O saxofonista estava em Rio Preto, interior de São Paulo, para uma temporada de bailes com o conjunto de Renato Perez.

A seu respeito misturavam-se histórias sobre as maravilhas extraídas do sax alto e um comportamento desconcertante – a repulsa à vaidade e seus inúteis serpenteios, a conversa toda mansa roçada por súbitas tiradas filosóficas, o silêncio em repouso num copo de martíni, as horas à toa na praça central em companhia de cães sem dono.

Noite do show. Em cena, músicos arregimentados na região - a cozinha, quatro trombones, cinco saxofones, quatro pistons.

“Ele é um dos maiores do mundo, e é modesto à beça”, diz Farath ao microfone, antes de apresentar Casé, autor do arranjo e do solo que virão.

Um gravador de rolo é acionado e registra Harlem Nocturne, a balada triste que o saxofonista tocará enquanto viver. Até 30 de novembro de 1978, quando seu corpo, coberto por marcas de agressão, for encontrado no chão de um hotel da Boca do Lixo, em São Paulo.

                                           Ouça a gravação AQUI:
                                            
                                                     
                                                 
                                                 
                                            

sexta-feira, 22 de julho de 2016

Uma sanfona contra a merreca

Por FERNANDO LICHTI BARROS

Asa Branca uma, duas, dez, vinte vezes. Pode pedir que Nivaldo toca, não se queixa e nem fica bravo. “Se braveza valesse, Lampião tinha ficado rico”, diz ele.

O baiano de Inhambupe acorda bem cedo em São Mateus, na zona leste de São Paulo, pega a sanfona Hohner preta, vai para o ponto de ônibus e segue ao encontro dos parceiros Zé Vieira e Daniel, cearenses do Cariri.

No Largo da Batata, em São Miguel, Mauá, numa praça qualquer, por volta das dez da manhã eles cobrem a cabeça com chapéu de vaqueiro e se transformam no Trio Beija-Flor Nordestino.

Acompanhada por triângulo e zabumba, a sanfona chora durante cinco ou seis horas, a não ser que uma chuva encurte o espetáculo. Dá-lhe baião, dá-lhe xaxado, samba, vá pedindo que eles atendem. Só não venha com o tal do funk. “Isso é música sem origem”, fala Nivaldo, de 70 anos. 


 Um ano mais moço que o ex-prensista Zé Vieira e três mais velho que o ex-ajudante geral Daniel, seus parceiros, ele trabalhou na construção civil até se aposentar. O salário liberado pelo INSS é tão esquálido, que Nivaldo recorre a um gesto - aperta o indicador contra o polegar da mão direita – para traduzir o valor da merreca.

Mas a sanfona, companheira desde a infância, não lhe falta numa hora dessas. Com Daniel e Zé Vieira, recolhe da caixa de papelão deixada na calçada até R$ 240 por dia. Às vezes a arrecadação aumenta. E, se a sorte estiver mesmo de plantão, pode se aproximar uma boa alma e perguntar:

- Toca uma de Dominguinhos?



sábado, 16 de julho de 2016

A escola que Nenê cursou


Por FERNANDO LICHTI BARROS

Nenê Benvenutti estava no Alasca em 1989 para fazer shows e gravações. De repente, alguém quis saber quais as escolas por onde ele havia passado. O ex-baixista d´Os Incríveis sorriu: 

- Os bailes, o estúdio, a noite...  

Era o resumo da trajetória iniciada aos 12 anos com uma gravação em que tocou bateria - depois viriam as apresentações ao contrabaixo com The Rebels, o sucesso de O Milionário com Os Incríveis, a fase do instrumentista que vai gravar O menino da porteira com Sérgio Reis, vai acompanhar Elis Regina em teatro, Simonal em boate, Raul Seixas num garimpo em Itaituba, no Pará.

 Em 1967, a voz de Nenê se espalhou pelas ondas do rádio e da tevê dando tratos de pilantragem ao samba-canção Molambo. Nele o rapaz criado no bairro da Pompeia, em São Paulo, repetia o timbre pueril aplicado pelo norte-americano Chris Montez em The more I see you, num dos discos mais ouvidos do ano anterior.

Num dia de 1969, conversavam o baixista e Jorge Ben. “Vou fazer uma música pros Incríveis, quero que você cante”, disse o Babulina. 


Cumpriu a promessa: enquanto Os Incríveis gravavam um LP na RCA Victor, Jorge apareceu no estúdio. Ali mesmo, acompanhando-se ao violão, registrou O vendedor de bananas num gravador. A canção, incluída no disco, teve o reforço de Bauru, Maguinho, Felpudo e Broegas nos metais, e Nenê outra vez tornou-se cantor. Para ele, fácil: foi só fazer da voz um instrumento.

Os bailes, o estúdio, a noite... 













segunda-feira, 11 de julho de 2016

Sizão Machado e a senha de Chet Baker

Por FERNANDO LICHTI BARROS
       
                                                    Foto: Regis Filho
                                                                                               
Chet Baker buscava um baixista para fazer shows na França. Sizão Machado estava em Paris e conhecia Chet. Um ano antes, em 1985, eles haviam ficado lado a lado, em São Paulo, na primeira edição do Free Jazz Festival e na gravação do CD Rique Pantoja & Chet Baker.

Retomariam, agora, a parceria, mas para completar o quarteto de Chet nessa nova jornada Sizão precisava de um contrabaixo acústico. Se a questão era essa, o trompetista tratou logo de resolvê-la. Foi a uma loja, tirou mil dólares do bolso e comprou para o colega brasileiro um instrumento simples mas eficiente.

Começaram a ensaiar no hoteleco onde Chet se hospedava. Tudo certo no plano administrativo: para as oito apresentações programadas, as viagens seriam feitas de trem, e os três contratados ganhariam 500 dólares por show - cachê a que mais de uma vez o líder acrescentou até 80%. 

No terreno musical, a única regra era embarcar rumo à liberdade. A cada vez Chet dava à mesma música uma cara diferente. E, apesar da inexistência de bateria no grupo, sugeriu a Sizão que flanasse pelas harmonias, sem se prender a marcações rígidas, às notas de cabeça.
Com a voz pequena, entre frases mastigadas, ele disse ao baixista que não se preocupasse: “Vamos tocar juntos”. Era a senha.

Num outro dia, ainda mais sucinto, revelou a Sizão o que invariavelmente esperava de quem estivesse tocando com ele:

- Cumplicidade.

Cinco sílabas de música e vida.





Rique Pantoja & Chet Baker- Saci (Brazilian Goblin) - YouTube

https://www.youtube.com/watch?v=qd4810PJhso
19 de out de 2015 - Vídeo enviado por ThePablorecords II
Rique Pantoja- Keyboards Chet Baker- Trumpet Sizão Machado- Bass Bob Wyatt- Drums.