sábado, 6 de julho de 2024

A falta que Laercio faz

 Por FERNANDO LICHTI BARROS

Foto: Regis Filho

Quando a “Dança das Horas” inunda a sala pelas ondas da Rádio Nacional, o menino de dois anos põe as mãos em concha atrás da orelha. É um sutil pedido de silêncio para ouvir a peça de Ponchielli.

 Em alto-mar, pouco mais de duas décadas depois, soa “Terra de Ninguém” no navio que busca a Inglaterra. É um quinteto, o Sambrasil, cujo pianista assina o arranjo da música de Marcos Valle.

Esguio, elegante, aos 25 anos ele combina preparo com gingado no exercício da profissão. Não poderia ser diferente: em casa, na cidade de Campinas, nunca deixou de pairar o som do bandolim, do violino, violão, piano ou das vozes dos pais, Ernesto e Helena, e dos irmãos, Zezé Moreno e Irene.

 Ao passo que lapida a técnica nos estudos, inicialmente com a professora Terezinha Leite e mais tarde no Conservatório Carlos Gomes, vai animando bailes – primeiro ao contrabaixo, com Sebastião e Sua Orquestra; em seguida ao piano, com os conjuntos de Afonso e de José Venceslau.

Já toca “Rapaz de Bem”, de Johnny Alf, com quem algum tempo depois irá se revezar na Baiúca, em São Paulo. Na memória, arranjos de Radamés Gnatalli para a Rádio Nacional, choros e marchas de Carnaval e Tonico e Tinoco formam um acervo precioso para o desempenho do ofício.

 Sem render-se a gêneros em ascensão ou aos trejeitos de Berkeley, ele experimenta farta e saborosa mistura – as boates e inferninhos, o regional de Esmeraldino Salles, a jam session da Folha de S. Paulo, a big band de Erlon Chaves, o grupo de Luís Carlos Vinhas acompanhando Maria Bethânia, as trilhas de pornochanchadas e de propaganda, o sucesso com a autoral “Capim Gordura”, a longa temporada com o Tamba 4 no México, dezenas de gravações com astros da chamada MPB e as apresentações no Country Club do Rio, ao lado de Luizão Maia, Hélio Delmiro e Paulo Braga.

Não bastasse tudo isso, a boa conversa,o  humor inteligente e, sempre, um beijo na testa dos amigos. Laercio de Freitas faz falta. Muita.

 

Laercio de Freitas - Aquelas Horas no Sumaré. 918 views · 6 years ago ...more. Gabriel Bottari. 270. Subscribe.


 

 

 

 


terça-feira, 11 de junho de 2024

Tia Amélia, mulher de coragem

 Por FERNANDO LICHTI BARROS


Na Igrejinha, cada show se confundia com uma celebração. Para divulgá-los, Suad, administradora da casa, ligava para as redações e cantava a pauta: a tantas horas, fulano estará aqui – assim mesmo,  sem grandes volteios. Podia ser Adoniran Barbosa, Victor Assis Brasil ou Alaíde Costa, por exemplo.

Numa tarde de dezembro de 1975, Suad telefona para os Diários Associados e diz que  Tia Amélia vai falar sobre a temporada que fará com Maysa, a cantora dos olhos não-pacíficos. 

É fácil ir do jornal, na Sete de Abril, até à Igrejinha. Basta caminhar entre a Biblioteca Mário de Andrade e o Paribar, seguir em direção à Avenida São Luiz e  tomar a Major Quedinho. Uns cento e poucos metros depois chega-se à  boate, na esquina da Santo Antônio com a Treze de Maio.

Lá dentro está a pianista. Óculos, cabelos presos em coque, bem-disposta, nada tímida, começa a contar trechos de uma trajetória iniciada na zona rural de Jaboatão, em Pernambuco.

Na infância nasceu o interesse despertado pelo piano. Depois, o domínio das teclas na adolescência e a especialização no choro; o sucesso alcançado em apresentações feitas em 1927 no Teatro Lírico do Rio de Janeiro; os netos que ajudou a criar em Goiânia e o retorno ao Rio, convencida por Carmélia Alves e Luiz Gonzaga. 

Confessa que, embora não compreenda, aprecia o futebol. Com a sua música, acrescenta, dá-se o mesmo. Não toca para dançar. Quem ouve, gosta porque entende, ou simplesmente gosta.

Entre choros, interpretados com uma vigorosa mão esquerda, vai falando, falando sobre caminhos percorridos durante 78 anos, que ela aumenta para 82. Um engano? Tanto faz. A cada frase, entremeada por sorrisos, ilumina-se a mulher de coragem, que enfrentou barreiras impostas pela família, pelo marido, e saiu tocando piano por aí.





Gravações de Tia Amélia ao vivo em seu programa de TV em 1965 ou 1966. As gravações foram realizadas por Marco Aurélio Xavier em fita rolo, ...
YouTube · Instituto Piano Brasileiro - IPB · 24 de abr. de 2018




quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Quando Guarnieri chegou aos 70



                       Por FERNANDO LICHTI BARROS(*)

 Aos sete anos mergulhou no universo da musica. Da primeira composição, “Sonho de um artista”, aos 11 anos, à mais recente, "Quinta sinfonia para orquestra e chorus”, ainda em fase acabamento, a vida do maestro Camargo Guarnieiri foi de constante dedicação. E assim deverá continuar:

- Sempre digo que só vou parar quando morrer -  diz ele, de camisa branca e calça azul, sentado numa poltrona em seu estúdio.

- A realização do desejo de um artista vai muito além daquilo que na verdade ele pode realizar. Quando a gente chega no momento em que as coisas começam a ficar claras é porque já está no fim. O sujeito já está começando a arrumar as malinhas para a viagem eterna – sorri o maestro,

Ele está falando sobre o objetivo de cada artista, de uma busca incessável. “Das 60 obras que já escrevi, aquilo ainda não representa o que eu gostaria de deixar ao meu povo, uma mensagem de amor e de paz. Infelizmente há muito  ódio na face da terra. Seria mais fácil se todos optassem pelo amor para conseguir a felicidade”

Ao completar 50 anos, declarou: “Um artista, para criar, precisa ser livre como a andorinha”. Hoje, 20 anos depois, ele reforça: “Só com a liberdade o artista pode produzir uma arte verdadeira, uma arte que seja a sua mais íntima expressão. Esse conceito da andorinha tá valendo, não é?”

SITUAÇÂO PRECARIA

Há alguns meses, em Porto Alegre, debatendo sobre a situação do músico brasileiro, surpreendeu a todos citando duas razões para explicar as atuais dificuldades por que passa a categoria:

- Em primeiro lugar, porque 90% dos músicos no Brasil detestam música, e depois porque 95% não sabem música.

E há outras razões, ele ressalta agora: “A situação dos músicos no Brasil é precaríssima. Quando o individuo não ganha o mínimo para a sua subsistência e da sua família, ele não pode produzir. É por isso que eles tocam em dois ou três lugares, pra somar tudo aquilo e conseguir o ordenado que dá pra comer o pão.

O maestro continua apontando falhas. Por exemplo: “No Brasil há a pianolatria, só se toca piano, os outros instrumentos não são estudados. A profissão de músico está muito por baixo, inclusive, porque os estudos são muito malfeitos”. Sua sua receita para ser um bom músico é tão breve quanto clara:

- Para ser bom musico tem que ter talento e estudar. Estudar muito – diz Guarnieri, para quem o compositor precisa ser dotado sobretudo de intuição.

Os músicos da orquestra que ele dirige – a Sinfônica da USP – estão entre os mais bem pagos do País: os salários vão de 9.800 a 15.400 cruzeiros. É o mínimo necessário exigido para o bom rendimento de um trabalho que o apaixona.

Há ainda outro fato que intranquiliza o maestro: a constatação de que a pior música importada, aqui, é sempre mais divulgada do que qualquer composição brasileira. Guarnieri com a palavra:

- O rádio toca 90% de musica estrangeira. Isso deforma, é uma coisa horrorosa. Você sabe que o veneno em dose cavalar mata o sujeito, não é? O que está acontecendo é isso. Você examina essas músicas americanas e vê que é tudo igual: rep-rep, rep-rep, rep-rep...

ALIMENTO DO ESPIRITO

“Criar um clube de futebol é muito fácil, mas criar uma orquestra...” Antes que as reticencias se prolonguem, o maestro acrescenta: “O esporte é necessário, mas a cultura também. Se um alimenta o corpo, o outro alimenta o espirito.

Para continuar em defesa da cultura, diz, “a única coisa que eu desejo é que eu tenha paz e saúde para trabalhar. Em toda a minha vida, o que tem me valido é uma palavra de duas letras: fé”

Camargo Guarnieri demonstra ter bastante convicção no que diz. Já há muito tempo, por exemplo, ele vem opinando a respeito da musica de vanguarda:

- Dizem que sou contra a música de vanguarda. Eu não sou contra a vanguarda, mas contra os maus músicos, aqueles de última hora, sabotadores, que vivem enganando a ingenuidade do povo.

- Ser compositor, hoje é muito difícil. Compositor é aquele que diz uma mensagem que ninguém disse. Entre parênteses: é preciso ter originalidade, personalidade, quer dizer, é a marca do sujeito, não é?

- Se é verdade que o artista é produto do meio em que vive, ele recebe influencia de toda parte, até do que come, do que bebe. Há uma função biológica e uma espiritual. O que eu vou dizer não é vaidade: todo mundo que me conhece diz que a minha musica é muito pessoal.

ESCONDENDO A TRISTEZA

De um modo geral, musica, para Guarnieiri, é uma atividade de significado sagrado. “Para mim, é religião”. A que ele faz, chama de contemporânea. E se, por acaso, alguém se referir à suposta impopularidade da musica erudita, o maestro reagirá assim:

- Ah, isso é besteira. Musica é uma arte que só exige audição. Para gostar, tem que ouvir. É uma arte do tempo: só existe enquanto é tocada.

Tocando, lecionando, compondo, sempre estudando, ele chega aos 70 anos. “Você pode dizer que agora, aos 70, eu olho para trás e me sinto profundamente feliz por ver que não tenho traído o meu desejo de um ser um artista nacional, cuja mensagem é a alma do meu povo”

Esse artista nacional olha tranquilo em direção a uma prateleira do seu velho estúdio, cheia de livros, discos e partituras. E confidencia.

- Eu sou um homem triste. Acho que 70% da minha obra traz dentro de si essa tristeza. Eu vivo a vida inteira tentando enganar; as pessoas que me conhecem pensam que eu sou muito alegre, mas, como eu vivo enganando, ninguém sabe que eu sou triste.

Camargo Guarnieri, septuagenário.

(*) Texto publicado por Fernando Lichti Barros em 1/2/1977, no Diário da Noite, e em 6/2/1977, no Diário de S. Paulo