Por FERNANDO LICHTI BARROS
Nada mais daquele guarda-roupa estiloso adotado no auge da fama para dançar iê-iê-iê em boates de Santos. Em agosto de 1987, quando nos encontramos, João Acácio vestia calça caqui, camiseta branca e tênis de pano. Nos cabelos curtos trazia discretos sinais de embranquecimento. Era um sábado de agosto. Vinte anos antes ele, o Bandido da Luz Vermelha, havia sido preso após longa caçada policial.
Na sala onde eu o entrevistava para O Estado de S. Paulo, João Acácio se
dizia regenerado. Já não estava ali, na Casa de Custódia e Tratamento de
Taubaté, onde conversávamos, o homem destemido que nos anos 60 roubava joias e
dinheiro em casas luxuosas depois de acordar os moradores com o clarão de uma
lanterna. Nem o sujeito que teve a ousadia de revelar a um desembargador a
vontade de matar algumas autoridades e depois “morrer com seis tiros na cara”.
Menos ainda o galanteador incorrigível que, em plena sessão de julgamento, lançou
piscadelas a uma mulher.
Citado em 94 processos como autor de assaltos, homicídios e estupros, ele se declarava regenerado. "Sou honesto, bacana, amigo de Deus". Sua rotina agora se resumia ao trabalho na oficina de montagem de prendedores de roupa e à leitura da Bíblia. Aprendera a ser “humilde, manso”, apesar de uma ou outra recaída para os lados da imodéstia – ainda se achava sábio e bonito, ainda se mostrava orgulhoso das façanhas que o transformaram num “bandido famoso, noticiado pela imprensa internacional”.
Coisas do passado. Quem se apresentava ali, aos 45 anos, era um homem cujos prazeres, revelados em meio a frases atropeladas, não iam além de comer chocolate e cantar.
Ofereceu a mim e a "toda humanidade" interpretações emocionadas de "Caminhoneiro", de Roberto e Erasmo Carlos, e "Cowboy fora da lei", de Paulo Coelho e Raul Seixas. Presenteou-me com um livreto, "Novo Testamento - Salmos, provérbios". No início, uma frase escrita a caneta: "Luz Vermelha ama só a Deus", afirmação desmontada numa das páginas finais: "Luz Vermelha não ama ninguém". Antes de ser reconduzido à cela, caminhando por um corredor mal iluminado, voltou-se para mim e prenunciou: "Hoje você vai sonhar comigo". Não deu outra.
Numa Remington da Casa de Custória escrevi o texto, transmitido ao jornal por telefone . Quatro meses depois recebi uma carta de João Acácio. Outras viriam, também endereçadas ao fotógrafo Newton Aguiar, meu parceiro naquela entrevista. Em todas, a mesma despedida: "Respeitosamente, assino-me; João Acácio Pereira da Costa, o saudoso e inesquecível ex-Bandido da Luz Vermelha".
Agradecia pela visita, uma das raras recebidas em
vinte anos na prisão, seis deles passados no Manicômio Judiciário. Depois do
Estadão, ele contava, até Gil Gomes o havia procurado com uma equipe da TV
Record para uma “produção estupenda”. Alternando frases escritas com tinta azul
e vermelha, desejou-me um Feliz Natal, “com todo conforto” e um cardápio
variado, composto por “bananas, champanhe, uísque, chocolate, nozes e - por que
não? - amendoins”.
Numa outra carta, o ex-Luz afirmou ter sido
“positivamente o homem que bateu recorde nas paixões, nas perseveranças e na
saudade que abalou corações”. E continuou: “Como homem de fabulosa fama
internacional, sempre fui curioso e vivi uma vida historiada... Fui homem que
passou para a galeria dos bandidos lendários, fui manchete de jornais e cheguei
a ser recorde e sucesso de literatura”. Tudo isso até o dia em que alguma coisa
aconteceu: “Entrei em eclipse lunar e solar, e assim, num duelo de titã entre o
crime e a perfeição, vi que o crime não compensa”.
João Acácio ficou preso até 1997 e voltou para Joinville,
a cidade natal, onde seria assassinado.
----------------------------------
Texto de Fernando Lichti Barros publicado pelo caderno Ilustríssima, da Folha de s. Paulo, em 27 de agosto de 2017.
Nenhum comentário:
Postar um comentário