Por FERNANDO LICHTI BARROS
Ilustração: Caco Bressane |
Sejamos francos: mais de uma vez a finesse da Oásis foi
sacudida pela troca de bofetões entre playboys encharcados de soberba e uísque
importado. Reina, porém, a civilidade na rotina da boate, localizada na Rua
Sete de Abril, esquina com a Praça da República. Poderosos industriais, pomposas
madames, intelectuais notáveis, todos são recepcionados com a mesma polidez
pelo porteiro Divino.
Ao sair do subsolo do Edifício Esther, onde funciona a Oásis,
esse público elitizado tem, não longe dali, outro endereço à sua espera. No nº
106 da Rua Major Sertório, o Michel Bar, a exemplo da concorrente, oferece
música de primeira. Lá está o quarteto de Walter Wanderley, em 1959, na única vez em que Dolores Duran apresenta-se
em São Paulo. No início dos anos 60, outros shows arrasadores virão, com
Antonio Carlos Jobim, Lúcio Alves e Ella Fitzgerald. A vizinha La Vie en Rose
mantém, da mesma forma, uma sequência estelar, com artistas do nível de Elza
Soares, Agostinho dos Santos e Isaurinha Garcia.
Brotam boates no trecho demarcado pela Rua da Consolação e o
Largo do Arouche, entrando pela Vila Buarque. Quase todas atraem a clientela
com acenos hipnotizantes. A área, identificada como Boca do Luxo, é um paraíso salpicado
de inferninhos. No mais tradicional, Teteia, na Rua Araújo, música ininterrupta
acalenta encontros furtivos.
Menos discretas, outras boates ostentam garotas de programa,
em ambiente propício a conversas sussurrantes, ao consumo de coquetéis coloridos
e à aragem de melodias que tanto levam ao devaneio como à empolgação. A
sensualidade é a vocação da Boca. A ela não resistirão nem mesmo o Michel e a La Vie en Rose.
Recém-chegado do Rio Grande do Sul, Nenê gosta de inovar no
seu instrumento, a bateria. Brevemente, ele será convidado a integrar os grupos
de Hermeto e Gismonti, mas, por enquanto, precisa tocar de maneira contida.
Garante, assim, cachê, espaguete e frango ensopado num inferninho escondido na
Rego Freitas.
Ilustração: Caco Bressanee |
No mapa da região destaca-se a La Licorne. Fica na Major Sertório,
quase esquina com a Vila Nova, e não exala perfume barato. Pelo seu espaço,
equipado com jogos de sofás, desfilam mulheres fatais, disponíveis ao jogo da
sedução em troca de dinheiro alto. A música completa o quadro. Em 1970, Natan
Marques, que já foi do iê-iê-iê e fará parte do grupo de Elis Regina, a tudo
assiste enquanto extrai acordes bonitos da guitarra.
Na Bento Freitas, a Black and White opera em faixa de maior
amplitude. Apesar de ombreada em anúncios de jornal aos lugares preferidos da
grã-finagem, como a Baiuca, a casa recebe, democraticamente, de sóbrios casais a
gente em busca de aventuras apimentadas. Em 62, tocam Oliveira e Seus Black
Boys. Dois anos mais tarde, desatento aos ventos ditatoriais que golpeiam o
país, o quinteto enfrenta horas de aperto. O motivo: uma versão do Hino
Nacional feita em ritmo de twist, durante um baile em Santo André, segundo noticia
o Diário da Noite.
Instala-se o quiproquó. Entram no caso a Secretaria da
Segurança Pública, o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) e o II
Exército. A Ordem dos Músicos abre processo “ético-profissional” para apurar esse
“pleno desrespeito à Pátria”. Convoca
Oliveira e sua turma para prestar depoimento, e ainda ameaça recorrer às
autoridades civis e militares se eles não comparecerem à entidade. Ao final,
fica patenteado o ridículo da patriotada: confundiu-se com um trecho do hino o
improviso feito pelo guitarrista Demercílio em American Patrol, do repertório utilizado por Glenn Miller para
animar as tropas dos Estados Unidos na Segunda Guerra.
llustração: Caco Bressane |
Melhor voltar à Boca, onde há assuntos mais agradáveis a
tratar. Por exemplo, o coqueiro de Itapoã, a moreninha da sandália de pompom
grená, o mar que é bonito, quebra na praia e, pelo timbre encorpado de Dorival
Caymmi, invade o Club de Paris, em frente à Teteia. Agende-se: em 1966, a
partir de 12 de junho, ele, o autor de tantas preciosidades, lá estará durante uma
semana, sempre a partir das duas da manhã.
Já que a noite é para os fortes, não se assuste com o horário
marcado. Vá antes à Rua Teodoro Baima. No Teatro de Arena, assista à saga de
Zumbi, de Guarnieri e Boal, e ouça a trilha de Edu Lobo, tocada por Theo de
Barros, Anunciação e Zé Bicão. Depois, passe no bar Redondo, defronte ao Arena. Às vezes está
por ali Caetano Veloso, que inscreveu Um
dia no 2º Festival de Música Popular Brasileira. Pronto: chegou a hora de
ouvir Caymmi.
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Da série Música no Ar: Um passeio pelo Centro na década de 1960, de Fernando Lichti Barros, publicada pelo Sesc 24 de Maio.
https://open.spotify.com/playlist/0wkAu1jlYbptVSSzfSBOhB
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