Por FERNANDO LICHTI BARROS(*)
Aos sete anos mergulhou no universo da musica. Da
primeira composição, “Sonho de um artista”, aos 11 anos, à mais recente, "Quinta
sinfonia para orquestra e chorus”, ainda em fase acabamento, a vida do maestro
Camargo Guarnieiri foi de constante dedicação. E assim deverá continuar:
- Sempre digo que só vou parar quando morrer - diz ele, de camisa branca e calça azul,
sentado numa poltrona em seu estúdio.
- A realização do desejo de um artista vai muito
além daquilo que na verdade ele pode realizar. Quando a gente chega no momento
em que as coisas começam a ficar claras é porque já está no fim. O sujeito já
está começando a arrumar as malinhas para a viagem eterna – sorri o maestro,
Ele está falando sobre o objetivo de cada artista,
de uma busca incessável. “Das 60 obras que já escrevi, aquilo ainda não
representa o que eu gostaria de deixar ao meu povo, uma mensagem de amor e de
paz. Infelizmente há muito ódio na face
da terra. Seria mais fácil se todos optassem pelo amor para conseguir a
felicidade”
Ao completar 50 anos, declarou: “Um artista, para
criar, precisa ser livre como a andorinha”. Hoje, 20 anos depois, ele reforça:
“Só com a liberdade o artista pode produzir uma arte verdadeira, uma arte que
seja a sua mais íntima expressão. Esse conceito da andorinha tá valendo, não
é?”
SITUAÇÂO PRECARIA
Há alguns meses, em Porto Alegre, debatendo sobre a
situação do músico brasileiro, surpreendeu a todos citando duas razões para
explicar as atuais dificuldades por que passa a categoria:
- Em primeiro lugar, porque 90% dos músicos no
Brasil detestam música, e depois porque 95% não sabem música.
E há outras razões, ele ressalta agora: “A situação
dos músicos no Brasil é precaríssima. Quando o individuo não ganha o mínimo
para a sua subsistência e da sua família, ele não pode produzir. É por isso que
eles tocam em dois ou três lugares, pra somar tudo aquilo e conseguir o
ordenado que dá pra comer o pão.
O maestro continua apontando falhas. Por exemplo: “No
Brasil há a pianolatria, só se toca piano, os outros instrumentos não são
estudados. A profissão de músico está muito por baixo, inclusive, porque os
estudos são muito malfeitos”. Sua sua receita para ser um bom músico é tão
breve quanto clara:
- Para ser bom musico tem que ter talento e estudar.
Estudar muito – diz Guarnieri, para quem o compositor precisa ser dotado sobretudo
de intuição.
Os músicos da orquestra que ele dirige – a Sinfônica
da USP – estão entre os mais bem pagos do País: os salários vão de 9.800 a
15.400 cruzeiros. É o mínimo necessário exigido para o bom rendimento de um
trabalho que o apaixona.
Há ainda outro fato que intranquiliza o maestro: a
constatação de que a pior música importada, aqui, é sempre mais divulgada do
que qualquer composição brasileira. Guarnieri com a palavra:
- O rádio toca 90% de musica estrangeira. Isso
deforma, é uma coisa horrorosa. Você sabe que o veneno em dose cavalar mata o
sujeito, não é? O que está acontecendo é isso. Você examina essas músicas
americanas e vê que é tudo igual: rep-rep, rep-rep, rep-rep...
ALIMENTO DO ESPIRITO
“Criar um clube de futebol é muito fácil, mas criar
uma orquestra...” Antes que as reticencias se prolonguem, o maestro acrescenta:
“O esporte é necessário, mas a cultura também. Se um alimenta o corpo, o outro
alimenta o espirito.
Para continuar em defesa da cultura, diz, “a única coisa
que eu desejo é que eu tenha paz e saúde para trabalhar. Em toda a minha vida,
o que tem me valido é uma palavra de duas letras: fé”
Camargo Guarnieri demonstra ter bastante convicção
no que diz. Já há muito tempo, por exemplo, ele vem opinando a respeito da
musica de vanguarda:
- Dizem que sou contra a música de vanguarda. Eu não
sou contra a vanguarda, mas contra os maus músicos, aqueles de última hora,
sabotadores, que vivem enganando a ingenuidade do povo.
- Ser compositor, hoje é muito difícil. Compositor é
aquele que diz uma mensagem que ninguém disse. Entre parênteses: é preciso ter
originalidade, personalidade, quer dizer, é a marca do sujeito, não é?
- Se é verdade que o artista é produto do meio em
que vive, ele recebe influencia de toda parte, até do que come, do que bebe. Há
uma função biológica e uma espiritual. O que eu vou dizer não é vaidade: todo
mundo que me conhece diz que a minha musica é muito pessoal.
ESCONDENDO A TRISTEZA
De um modo geral, musica, para Guarnieiri, é uma
atividade de significado sagrado. “Para mim, é religião”. A que ele faz, chama
de contemporânea. E se, por acaso, alguém se referir à suposta impopularidade
da musica erudita, o maestro reagirá assim:
- Ah, isso é besteira. Musica é uma arte que só
exige audição. Para gostar, tem que ouvir. É uma arte do tempo: só existe
enquanto é tocada.
Tocando, lecionando, compondo, sempre estudando, ele
chega aos 70 anos. “Você pode dizer que agora, aos 70, eu olho para trás e me
sinto profundamente feliz por ver que não tenho traído o meu desejo de um ser
um artista nacional, cuja mensagem é a alma do meu povo”
Esse artista nacional olha tranquilo em direção a
uma prateleira do seu velho estúdio, cheia de livros, discos e partituras. E
confidencia.
- Eu sou um homem triste. Acho que 70% da minha obra
traz dentro de si essa tristeza. Eu vivo a vida inteira tentando enganar; as
pessoas que me conhecem pensam que eu sou muito alegre, mas, como eu vivo
enganando, ninguém sabe que eu sou triste.
Camargo Guarnieri, septuagenário.
(*) Texto publicado por Fernando Lichti Barros em 1/2/1977, no Diário da Noite, e em 6/2/1977, no Diário de S. Paulo