quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Lambari, da Sé ao Municipal




Por FERNANDO LICHTI BARROS

Três bailes programados. Roberto Ferri, líder da orquestra, saiu em busca do saxofonista que faltava para completar o naipe de sopros. Foi bater no Ponto dos Músicos da Praça da Sé, frequentado à época, 1954, pelos chamados "avulsos".

Acompanhado pelo pai, Domingos, lá estava um garoto que três anos antes, aos 12, já se perfilava na Sinfônica Juvenil do Masp aos também iniciantes Isaac Karabtchevsky, Julio Medaglia e os irmãos Regis e Rogério Duprat.

Combinado: o garoto, clarinetista no Masp e em casa todo dedicado ao sax, faria os bailes com Ferri. Bastou o primeiro para ele revelar surpreendente maturidade. Tocava com firmeza, o timbre bem definido encorpado aos metais. Pronto: ganhou a vaga, profissionalizou-se e ainda ganhou o apelido que o acompanharia por toda a vida. Eduardo Pecci, irmão do igualmente saxofonista Peixinho, passou a ser Lambari.

Um ano depois da estreia foi para a orquestra da Rádio Bandeirantes, e em 1958, no lugar deixado pelo célebre tenorista Bolão, passou a trabalhar com Sylvio Mazzucca. Na linha de saxofones destacava-se Casé, um músico fenomenal, magrinho e modesto feito o colega recém-contratado. Tornaram-se grandes amigos.

Com Mazzuca, Lambari gravou Festa de Aniversário e Festa de Formatura, LPs que tiveram duas músicas – Tequila e Cervezza – entre as mais tocadas de 58. Mesmo após a saída de Casé, a orquestra manteve o naipe com extraordinária qualidade. Era um time de craques, em que  Lambari trocava passes com Waltinho, Carlos Alberto, Pedrinho e Bauru.

- Coerência, interesse em produzir bem, companheirismo, egos administrados.

Era assim, com essa fórmula aparentemente simples, que Lambari explicava o  padrão mais tarde levado por ele e seus companheiros à orquestra de Carlos Piper.

O saxofonista cumpriu por anos uma agenda de incontáveis programas de televisão, bailes e gravações. Numa delas deixou a marca da sua personalidade, mistura de arrojo sonoro e despojamento pessoal. Junto com o pianista Gogô, o baixista Capacete e o baterista Hamilton Pitorre, fez em dois dias o hoje cultuado LP Quarteto Lambari, lançado sem show, sem coquetel, sem pompa ou circunstância.

Na década de 1970, quando trabalhava na TV Tupi, num desses voos inesperados da memória, alguma coisa o levou de volta ao erudito, à música tocada por ele aos 12 anos na Sinfônica Juvenil do Masp.

Em 77 foi para a orquestra do Teatro Municipal de São Paulo, e lá permaneceu até se aposentar, 32 anos depois, como primeiro clarinetista.

Lambari, gente fina, morreu dia 19 de agosto do estranho 2020, aos 81 anos. 

Quarteto Lambari - 1966 - Full Album - YouTube


Vídeo para Quarteto Lambari full







Silvio Mazzuca Tequila. 24,736 views24K views. • Feb 2, 2012. 156 3. Share Save. 156 / 3. Neo ...



domingo, 26 de julho de 2020

Leo Canhoto e o sangue do dragão




Por FERNANDO LICHTI BARROS

Leo Canhoto vai se apresentar à noite no Circo Americano Pipoquinha.

Ele dirige um Galaxye bordô rumo a Registro, no Vale do Ribeira. Robertinho, seu parceiro, desliza pela Regis Bittencourt em outro carrão, ao lado de Casquinha, o faz-tudo da dupla. 

É uma quinta-feira abafada, março de 1977. Leo vai lembrando trechos da infância e parte da juventude, vividas entre Inhumas, cidade do interior de São Paulo, e as paranaenses Sertanópolis e Cafeara.

No tempo em que o Paraná  “era um sertão só”, ele ainda atendia pelo nome de batismo, Leonildo Sachi, e pelo rádio ouvia canções de Raul Torres e Florêncio, de Luizinho e Limeira. Passava o dia na roça, mas era recorrente a ideia de ir embora. Não era justo trabalhar, trabalhar e não ter dinheiro para comprar um sapato. Então, resolveu: "Vou sumir”. Despediu-se dos pais e foi para Londrina. Lá começou a cantar.

Em 1969, em Goiânia, conheceu José Simão Alves, um ex-tratorista de Buriti Alegre. O rapaz era bom de gogó, saia-se bem na segunda voz e passou a se chamar Robertinho. Nasceu a dupla.

No ano seguinte, cansados da imagem estereotipada dos cantores que admiravam, Leo Canhoto e Robertinho trocaram o cabelo aparado, a camisa xadrez e o chapéu de palha por botas cromadas, frondosa cabeleira, anelões e colares, arremedos da já então extinta Jovem Guarda. E mais: nas gravações, guitarra, órgão e bateria rompiam com a sonoridade tradicionalmente adotada pela música caipira.

 “Estamos acompanhando a evolução geral”, diz Canhoto ao chegar a Registro. O alto-falante do circo berra:

- Não percam! Leo Canhoto e Roberrrrrtinho, os hippies da música sertaneja!

Uma placa anuncia o espetáculo, que além dos maiores sucessos da dupla terá a encenação de "O Sangue do Dragão Vermelho", um drama “fantástico, violento, selvagem, espantoso, terrível e engraçado”.

Recepcionados por Pinduquinha, o dono do circo, somos convidados a jantar. Enquanto se providencia a comida – arroz, feijão, bife acebolado e salada de alface -, Canhoto, com uma sede profunda, emborca sucessivas doses de cachaça. Daqui a pouco vai começar o espetáculo.

Às 21h30, ele e Robertinho entram em cena. Para uma plateia lotada, autoridades presentes, eles destilam o repertório sob aplausos entusiasmados. Com “Eu e a Dinha”, levam o público ao delírio:

Eu estou chorando pela Dinha, eu estou sofrendo pela Dinha, eu estou morrendo pela Dinha, eu estou soluçando pela Dinha.

Vem, finalmente, “O sangue do dragão vermelho”. O cenário enxuto, composto por mesa e garrafas, sugere funcionar ali um bar administrado por Casquinha, o faz-tudo.

Os cantores agora são caubóis, são mocinho e bandido que não demoram a partir para a troca de bordoadas e tiros de espoleta na disputa entre o bem e o mal. Na cena mais tensa, Canhoto, o xerife, volteia aos gritos um machado acima da cabeça. Gestos largos para uma interpretação inflamada. 

Protocolarmente acomodados na primeira fila, a poucos metros da lâmina empunhada pelo ator, prefeito e primeira-dama acompanham o enredo.

Não foi desta vez que o Executivo local se tornou acéfalo.
  
  










segunda-feira, 13 de abril de 2020

Moraes, malandro de fé e de filosofia



Por FERNANDO LICHTI BARROS



 Moraes Moreira defendia a necessidade de ser meio Garrincha, meio Elza Soares para vencer barreiras com drible e balanço. Era agosto de 1977. Conversávamos sobre  "Cara e Coração", seu segundo disco pós-Novos Baianos, sobre a canção que ele compôs em homenagem ao filho, Davi, então com quatro anos, e sobre a retomada do choro. Moraes falou também sobre intuição, sobre a apuração do seu estilo. E ainda recitou a letra de "Erupções Cutâneas", parceria dele com Chacal, vetada pelo Departamento de Censura da Polícia Federal. O resultado desse encontro foi publicado pelo autor deste blog no Diário de S. Paulo.


Um sambista baiano, um artista, um bandido, um cigano.
O que é?
Com a bola no pé e a viola na mão, vê se você destrincha.
Eu sou Elza Soares, eu sou Mané Garrincha.

A letra de "O que é, o que é" se parece muito com o seu criador, Moraes Moreira, 30 anos, que durante cinco fez parte dos Novos Baianos. “Eu acho que eu sou mais ou menos isso daí. Na vida, tem hora que você tem que  ser Mané Garrincha: tem que dar um drible. E tem hora que você tem que ser Elza Soares: tem que dar uma balançada, se não você não leva, sabe como é”.

Antonio Carlos Moraes Pires começou a driblar e balançar muito cedo, em Ituaçu, a cidade onde nasceu e passou a infância, na Bahia. Sanfona na mão ou bola no pé, aprendeu que quem transa seus males espanta. Foi para Salvador, entrou no Seminário de Música, onde conheceu Tom Zé, um grande incentivador.

Depois, com Galvão, Paulinho Boca de Cantor e Baby Consuelo, formou os Novos Baianos. Veio o primeiro show, "Desembarque dos Bichos", e depois a chegada ao eixo SP-Rio. Nessas andanças, a soma do visto, ouvido e vivido. "Vivendo e aprendendo", diz ele. Resultado: um trabalho brasileiro.

                          VIVO!

 Agora, a Som livre está lançando o segundo LP de Moraes Moreira, “Cara e Coração”.. Foram oito meses de amadurecimento.

-- Tinha uma ideia inicial e fui fazendo devagarzinho. Enfrentei a maior barra, inclusive quanto à sobrevivência.

Moraes mostrou até anteontem, no teatro da Fundação Armando Alvares Penteado, seu momento musical.”Com esse disco eu acho que cheguei a um ponto em que procurei apurar meu estilo. Tudo o que me identifica – a maneira de compor, de tocar violão – eu procurei mostrar no disco”.

“Cara e coração" traz, entre outras músicas, “Meio fio”, com letra de Chacal, “Davilicença” (“um choro de quintal, feito para o meu filho de quatro anos”) e “Yogue de ouvido” (“que é o que você inventa, a sua maneira de ser, a intuição”), essas duas em parceria com o guitarrista e bandolinista Armandinho; “Às três da manhã", de Herivento Martins (“que eu considero um dos maiores compositores”) e “Pombo Correio”, melodia composta em 1950 pelos fundadores do Trio Elétrico Dodô e Osmar, com letra feita recentemente por Moares.

No disco era para ter também “Erupções Cutâneas”, com letra de Chacal.

Nesses dias saí com uma mina, uma tal de Leontina

Levei ela lá na Quinta da Boa Vista

Um bom passeio no Jardim Zoológico

Leontina, minha mina, se amarrou no crocodilo com cara de esquilo.

Até aí foi tudo bem

Mas no terceiro saco de amendoim

que a gente repartia com o elefante

enquanto eu começava a ficar ofegante por Leontina

ela começou a eruptar 

É que aquela macaca tinha erupções cutâneas das mais estranhas quando comia amendoim

Ai de mim

Mas essa a Censura Federal achou “atentatória à moral e aos bons costumes”.

             JUVENTUDE NO CHORO

Moraes conta: “Disco, se jogar na praça e não pintar, dança. E a fábrica não faz a menor força.” Outra coisa: “Tocar na rádio é uma barra. Não basta cê fazer um bom disco. Quer dizer: aí já estamos entrando no velho terreno das injustiças que perseguem o artista brasileiro. Para que um trabalho seja divulgado é preciso superar, antes, as  exigências e imposições dos meios de divulgação”.

E lá vai Moraes Moreira, de “Cara e Coração”, mostrar seu trabalho. “O artista, em vez de ficar se lamentando, tem que encarar. Eu tô a fim de trabalhar. Tô com disco pronto e com o show. Tô aí. A coisa de trabalhar me fortalece demais”.

As músicas de Moraes Moreira vão do samba ao rock, do frevo ao choro. Com um detalhe: tudo leva sua marca, o seu jeito. Nada de ficar apenas  preservando em nome das raízes ou o que for.

-- Por exemplo, tô vendo esse negócio de choro, esse movimento como muito bom, mas é preciso, além de preservar, criar coisas novas, botar nossa juventude em cima do choro.


Não, não tem lógica

Jogue por música.

Não, não tem música

Toque de ouvido

Yogue de ouvido

Vidente, poeta

Malandro de fé e de filosofia

Morou, Maria?

Como ele canta em “Yogue de ouvido", Moraes vai  encarando tudo à sua maneira. “Minha proposta é mais musical do que  qualquer coisa. Tô fazendo um trabalho alegre, as pessoas cantam e dançam comigo. Há uma resposta, e isso dá a maior força”.

Acompanhado por um grupo de músicos jovens, “todo mundo participando, cada um existindo”, Moraes Moreira trabalha. “Tem que transar. Trabalho é vida. E música é onde eu falo melhor”.

Morou, Maria?

31 de jul. de 2018 - Vídeo enviado por Moraes Moreira - Topic
Yogue de Ouvido · Moraes Moreira Cara e Coração1977 Som Livre