Por FERNANDO LICHTI BARROS
Moraes Moreira defendia a necessidade de ser meio Garrincha, meio Elza Soares para vencer barreiras com drible e balanço. Era agosto de 1977. Conversávamos sobre "Cara e Coração", seu segundo disco pós-Novos Baianos, sobre a canção que ele compôs em homenagem ao filho, Davi, então com quatro anos, e sobre a retomada do choro. Moraes falou também sobre intuição, sobre a apuração do seu estilo. E ainda recitou a letra de "Erupções Cutâneas", parceria dele com Chacal, vetada pelo Departamento de Censura da Polícia Federal. O resultado desse encontro foi publicado pelo autor deste blog no Diário de S. Paulo.
Um sambista baiano, um artista, um bandido, um cigano.
O que é?
Com a bola no pé e a viola na mão, vê se você destrincha.
Eu sou Elza Soares, eu sou Mané Garrincha.
A letra de "O que é, o que é" se parece muito com o seu criador,
Moraes Moreira, 30 anos, que durante cinco fez parte dos Novos Baianos. “Eu
acho que eu sou mais ou menos isso daí. Na vida, tem hora que você tem que ser Mané Garrincha: tem que dar um drible. E
tem hora que você tem que ser Elza Soares: tem que dar uma balançada, se não
você não leva, sabe como é”.
Antonio Carlos Moraes Pires começou a driblar e balançar
muito cedo, em Ituaçu, a cidade onde nasceu e passou a infância, na
Bahia. Sanfona na mão ou bola no pé, aprendeu que quem transa seus males
espanta. Foi para Salvador, entrou no Seminário de Música, onde conheceu Tom
Zé, um grande incentivador.
Depois, com Galvão, Paulinho Boca de Cantor e Baby Consuelo, formou os Novos Baianos. Veio o primeiro show, "Desembarque dos Bichos", e depois a chegada ao eixo SP-Rio. Nessas andanças, a soma do visto, ouvido e vivido. "Vivendo e aprendendo", diz ele. Resultado: um trabalho brasileiro.
VIVO!
Agora, a Som livre
está lançando o segundo LP de Moraes Moreira, “Cara e Coração”.. Foram oito
meses de amadurecimento.
-- Tinha uma ideia inicial e fui fazendo devagarzinho.
Enfrentei a maior barra, inclusive quanto à sobrevivência.
Moraes mostrou até anteontem, no teatro
da Fundação Armando Alvares Penteado, seu momento musical.”Com esse disco eu
acho que cheguei a um ponto em que procurei apurar meu estilo. Tudo o que me
identifica – a maneira de compor, de tocar violão – eu procurei mostrar no disco”.
“Cara e coração" traz, entre outras músicas, “Meio fio”, com
letra de Chacal, “Davilicença” (“um choro de quintal, feito para o meu filho
de quatro anos”) e “Yogue de ouvido” (“que é o que você inventa, a sua maneira
de ser, a intuição”), essas duas em parceria com o guitarrista e bandolinista
Armandinho; “Às três da manhã", de Herivento Martins (“que eu considero um dos
maiores compositores”) e “Pombo Correio”, melodia composta em 1950 pelos
fundadores do Trio Elétrico Dodô e Osmar, com letra feita recentemente por
Moares.
No disco era para ter também “Erupções Cutâneas”, com letra
de Chacal.
Nesses dias saí com uma mina, uma tal de Leontina
Levei ela lá na Quinta da Boa Vista
Um bom passeio no Jardim Zoológico
Leontina, minha mina, se amarrou no crocodilo com cara de esquilo.
Até aí foi tudo bem
Mas no terceiro saco de amendoim
que a gente repartia com o elefante
enquanto eu começava a ficar ofegante por Leontina
ela começou a eruptar
É que aquela macaca tinha erupções
cutâneas das mais estranhas quando comia amendoim
Ai de mim
Mas essa a Censura Federal achou “atentatória à moral e aos
bons costumes”.
JUVENTUDE NO CHORO
Moraes conta: “Disco, se jogar na praça e não pintar, dança.
E a fábrica não faz a menor força.” Outra coisa: “Tocar na rádio é uma barra.
Não basta cê fazer um bom disco. Quer dizer: aí já estamos entrando no velho
terreno das injustiças que perseguem o artista brasileiro. Para que um trabalho
seja divulgado é preciso superar, antes, as exigências e imposições dos meios de
divulgação”.
E lá vai Moraes Moreira, de “Cara e Coração”, mostrar seu
trabalho. “O artista, em vez de ficar se lamentando, tem que encarar. Eu tô a
fim de trabalhar. Tô com disco pronto e com o show. Tô aí. A coisa de trabalhar
me fortalece demais”.
As músicas de Moraes Moreira vão do samba ao rock, do frevo
ao choro. Com um detalhe: tudo leva sua marca, o seu jeito. Nada de ficar
apenas preservando em nome das raízes ou
o que for.
-- Por exemplo, tô vendo esse negócio de choro, esse
movimento como muito bom, mas é preciso, além de preservar, criar coisas
novas, botar nossa juventude em cima do choro.
Não, não tem lógica
Jogue por música.
Não, não tem música
Toque de ouvido
Yogue de ouvido
Vidente, poeta
Malandro de fé e de filosofia
Morou, Maria?
Como ele canta em “Yogue de ouvido", Moraes vai encarando tudo à sua maneira. “Minha proposta
é mais musical do que qualquer coisa. Tô
fazendo um trabalho alegre, as pessoas cantam e dançam comigo. Há uma resposta,
e isso dá a maior força”.
Acompanhado por um grupo de músicos jovens, “todo mundo
participando, cada um existindo”, Moraes Moreira trabalha. “Tem que transar.
Trabalho é vida. E música é onde eu falo melhor”.
Morou, Maria?
31 de jul. de 2018 - Vídeo enviado por Moraes Moreira - Topic
Yogue de Ouvido · Moraes Moreira Cara e Coração ℗ 1977 Som Livre